O salão nobre dos Paços do Concelho acolheu, na tarde de domingo, a sessão solene que assinalou os 40 anos do 16 de Março. Os caldense encheram a sala para escutar o major general Matos Coelho, o mais graduado militar vivo que participou no “levantamento”, o jornalista Joaquim Vieira, autor de várias obras da história recente de Portugal e a historiadora Joana Tornada autora da tese de mestrado Nas Vésperas da Democracia em Portugal – O Golpe das Caldas de 16 de Março de 1974 (2009).
Os três intervenientes deixaram interessantes notas sobre este acontecimento histórico, que faz parte da histórica contemporânea portuguesa e que acabou por conduzir à Revolução de Abril. Hoje, com os elementos deslindados mais recentemente é possível entender toda a dimensão deste acto que teve repercussão mundial e que Caldas da Rainha correu os noticiários de quase todo o globo.
“A história da democracia portuguesa passa pelas Caldas da Rainha”. São palavras da investigadora Joana Tornada que considera que esta percorre “silenciosamente” algumas das suas estradas nacionais. “A 115, 114 e 8 são testemunhas do caminho da liberdade. As suas curvas, constante nevoeiro e lugares ouviram, naquela madrugada, o som da coluna sublevada do RI5 e, testemunharam a surpresa de todos, bem como o medo e a coragem daqueles que partiram do quartel, convictos que outros camaradas os acompanhavam (não porque tivessem saído das suas unidades, mas porque eram camaradas do Movimento)”, disse a historiadora, acrescentando que os militares que participaram “sabiam que as forças governamentais iriam reagir, sabiam que lhes esperava uma condenação”.
Nas mesmas estradas, “e como num jogo de sombras”, as forças governamentais também circularam de alguma forma enigmática: “Não a toda a velocidade (como seria de esperar), não de uma forma ordeira e certeira, mas sim lentamente, com furos pelo caminho, com regressos inoportunos, com atrasos”, contou a convidada acrescentando que, ao contrário, do que acontecia no Comando, “os militares não tinham pressa e ignoravam a gravidade dos acontecimentos”.
A oradora referiu também a povoação de Tornada (sua homónima) como um local importante do golpe já que foi ali que se concentraram “as forças vindas do RI7, de Leiria, lideradas pelo Ten. Coronel Guimarães”. Para a investigadora foi “surpreendente” o facto de estes militares terem aqui permanecido, “enquanto no quartel se aguardava a chegada da coluna e se preparava o cerco”.
A convidada classificou o quartel militar da cidade (hoje ESE) como o edifício mais simbólico das Caldas tendo sublinhado que a sua biblioteca “faz parte do património histórico da História portuguesa, uma vez que testemunhou o início e o fim do prelúdio da democracia”.
Por um lado, no dia 15 de Março, naquele espaço “assistiu-se ao discurso do tenente coronel Horácio Lopes Rodrigues”. Para a historiadora é assim “um espaço de memória coletiva, um segredo bem guardado de quem sabe que lutar pela revolução não é fácil (embora aparente) nem simples ou é um caminho solitário”.
Mapear do Golpe das Caldas
Outro dos espaços relacionado com a sublevação caldense é a envolvente do quartel, “desde a estrada das Gaeiras, à bomba de combustível, ao pinhal das traseiras e à estrada nacional 8”. Após ter explicado a saída e o regresso da coluna do RI5, a investigadora salientou o facto da estrada não ter sido cortada. Logo “a coluna sublevada regressou ao quartel sem ser interceptada e timidamente as forças do RI7 foram estabelecendo o cerco, sem comando ou informações”.
Entre as 10h35 e as 12h00, contou a investigadora, fixaram-se carros de combate e outros veículos no Avenal, perto da bomba de combustível e “uma força da GNR vigiava as vias de acesso”.
Entretanto, os jornalistas estrangeiros apareceram junto dos portões da unidade e como a estrada ainda não tinha sido cortada, isso permitiu que os militares do RI5 “garantidamente despertassem o mundo e o país para a sua causa”.
A investigadora afirmou que também os caldenses “estavam ansiosos e curiosos, nos cafés e nas ruas corriam boatos. Muitos deslocaram-se ao alto do Avenal para presenciarem os acontecimentos”. Na sua opinião, quem esteve naqueles locais, a 16 de Março de 1974, “sabe que verdadeiramente alguma coisa aconteceu e que o nascimento da democracia portuguesa passou por esta cidade”, rematou.
Golpe das Caldas na TV francesa em horário nobre
O jornalista e documentarista, Joaquim Vieira, não estava em Portugal no 16 de Março. Encontrava-se em França, no exílio. Já tinha estado preso em Peniche e em Caxias, durante ano e meio por razões políticas e “como arriscava ser novamente detido”, em final de 1973 resolveu partir para Paris.
Precisamente no dia 16 de Março, e apesar de ter afirmado que nunca foi do PS, “nem antes nem depois do 25 de Abril”, Joaquim Vieira fora convidado para almoçar em casa de Mário Soares, por ser amigo do seu filho, João Soares. E contou na sessão que quando chegou a casa do anfitrião, também refugiado em França, alguém tinha ligado para o informar do que se passava: “uma bernarda, revolta, motim, em Portugal, que havia uma coluna que saira e já se falava das Caldas da Rainha”.
Mesmo apesar da censura que existia no país e de ainda faltarem décadas para os primeiros telemóveis, pelos canais da oposição, o golpe das Caldas chegava à capital francesa. “O que numa primeira fase causou até alguma desorientação”, disse o jornalista.
Apesar de Mário Soares já ser então um importante líder socialista, “este não tinha nenhuma comunicação sobre o que se estava a passar ou dos pormenores da acção em curso”. Havia então informações desencontradas, adiantadas por vários elementos do PS e chegou a ser comentado que haveria também uma sublevação em Leiria. Joaquim Vieira, que tinha os pais na capital de distrito, ligou-lhes e estes “ficaram muito espantados com a pergunta sobre se a tropa estava na rua. E também não sabiam de nada com que se estava passar nas Caldas”, revelou o jornalista, acrescentando que havia então a ideia de que estava em curso um movimento de descontentamento militar, ao nível dos oficiais intermédios, “mas não existia nada de concreto sobre as acções que estavam previstas nem se iria ou não ser desencadeada algum acção militar”.
A informação chegara à capital francesa e, durante todo o dia, tentaram obter mais informações sobre o que se estava a passar. Nessa noite Mário Soares foi até convidado pela televisão francesa para falar em directo à noite no Telejornal e Joaquim Vieira acompanhou-o ao estúdio. “Com a capacidade politica que lhe conhecemos, fez parecer que estava informado sobre o que se estava a passar quando na verdade não sabia de nada”, contou o convidado. Para Joaquim Vieira o que Mário Soares fez “foi uma apropriação imediata do ponto de vista política do 16 de Março que estava a acontecer nas Caldas da Rainha”.
Uma sublevação combinada por quatro militares
Para o general Matos Coelho, o facto de terem passado 40 anos sobre o “16 de Março ainda não foi suficiente para que “os factos que conduziram à sua génese e derrota fossem consensuais”.
Para o convidado e testemunha-actor do acontecimento, a maioria dos militares do RI 5, na noite de saída da coluna, “estava convicta de que participava numa operação do «Movimento dos Capitães», com os mesmos objectivos dos que acabaram por sair das suas unidades em 25 de Abril”.
Após ter feito uma contextualização sobre as circunstâncias já conhecidas do que moveu os militares e sobre as divergências existentes entre eles por razões de carreira – uns oriundos de cadete e outros oriundos de milicianos – deu a conhecer que a 5 de Março, “estes dois grupos acordaram actuar conjuntamente”.
A 9 de Março, explicou o general, as unidades militares encontravam-se em “prevenção rigorosa”, após terem sido conhecidas as ordens de transferência de quatro capitães do movimento, “entre eles Vasco Lourenço”. Os capitães e tenentes dos dois grupos, do Regimento das Caldas, em conjunto, “informaram o Comandante da sua solidariedade com os camaradas transferidos”.
Três dias depois, na perspectiva da demissão dos generais Costa Gomes e Spínola, “declararam também em conjunto, ao comandante, que se surgisse alguma atitude do Governo contra os generais, estariam solidários com eles, podendo ser desencadeada alguma acção”.
Segundo o convidado, a 13 de Março, em Santarém e em Lisboa, dois tenentes do Regimento (oriundos de cadetes), participaram em reuniões com responsáveis pelo Movimento para um golpe que esteve previsto para 14 de Março e que “foi anulado porque os pára-quedistas afirmaram precisar de dez dias para prepararem a operação”,disse. No RI5 ficou-se pois a aguardar novas indicações, com a convicção de que “nada iria acontecer naquele período”.
O busílis do Golpe das Caldas
Só que, segundo o general, há uma informação que faltava e que só anos depois se soube, que foi o facto de “dois oficiais do regimento caldense, que eram da Comissão Coordenara dos oriundos de milicianos, que foram, na noite de 14 de Março, a Lisboa e junto dos oficiais da chamada tendência “spinolista” [Casanova e Monge], afirmaram que não podiam esperar mais, porque o Regimento das Caldas, sendo dos mais fortes, iria para exercícios finais”.
Esta ida “foi uma atitude isolada dos dois oficiais oriundos de milicianos que, sem mandato dos oficiais do Movimento da unidade e com desconhecimento destes, tentaram influenciar a precipitação duma ação que, conforme havia sido acordado, não iria acontecer de imediato”.
Isto levou à precipitação dos acontecimentos, já que aqueles tinham receio “da iminente exoneração do general Spínola que lhes prometera a resolução dos problemas de carreira”.
Matos Coelho relembrou que no dia 15 de Março, à tarde, tomou posse um novo comandante no RI5.
“Cerca das 23h00, sem que nada o fizesse esperar, chegou ao quartel o capitão Armando Ramos, oriundo de miliciano, com a indicação de que “deveríamos ir ocupar o aeroporto”, segundo ele, por decisão do movimento, na sequência de uma reunião, com os majores Casanova, Monge e Otelo, estes dois pertencentes à Comissão Coordenadora do Movimento.
Esta decisão, “soubemos muito depois, tinha sido tomada da forma que Manuel Monge, mais tarde, descreveu: Dia 15 de Março de 1974, na minha casa em Algés, estávamos, o Casanova, o Otelo e o Armando Ramos. O Virgílio Varela viera na véspera das Caldas da Rainha para nos comunicar que o RI 5 estava em polvorosa. Inesperadamente chega-nos um telefonema de Lamego, do capitão Ferreira da Silva, a informar que o CIOE, (Lamego), entrara em desobediência contra o Comandante da Região Militar Norte e estava em condições de pôr uma companhia em armas sobre Lisboa e pedia ajuda.”
Assim “decidimos ali retomar o plano que a hesitação dos páras pusera em stand-by”. O Otelo saiu para Mafra, o Casanova para Santarém, o Armando Ramos para as Caldas.” Sobre a mesma reunião, o general recordou declarações de Casanova Ferreira à Gazeta das Caldas em 19/3/93: “aquilo foi muito mal feitinho. Aquilo foi feito de uma forma muito ordinária por quatro gajos”.
As dúvidas permaneceram quanto à operação
Segundo contou Matos Coelho, já no 16 de Março, “Armando Ramos dizia-nos que já havia outras unidades na rua e repetia que “estávamos atrasados””. Neste contexto, contou o general, “cerca da meia-noite, desencadeia-se a neutralização do comandante e do segundo-comandante”. Mas as dúvidas mantiveram-se, mesmo quando a coluna avançou rumo à capital. Matos Coelho afirmou que nas acções de sublevação “não existiu um comandante da revolta, tendo-se evidenciado o espírito de corpo, com base no bem treinado plano de defesa do aquartelamento e na organização da Companhia de Caçadores”.
Quem partiu não sabia que afinal estavam a ser feitas chamadas pelo comandante, supostamente neutralizado (mas com acesso ao telefone) e que informou da partida da coluna para Lisboa dizendo “que tinha levado grande parte dos oficiais para repor os generais e derrubar o Governo”, contou o orador.
Pelas 07h15, junto ao rio Trancão, Casanova Ferreira e Manuel Monge, vindos de Lisboa, “informaram que a coluna tinha de regressar a Caldas da Rainha, pois era a única que tinha saído, e que estava um dispositivo militar preparado, à entrada da cidade, para a defrontar”.
Cerca das 10h30, a coluna voltou ao quartel nas Caldas da Rainha. Já ali se encontravam os majores Casanova e Monge que, juntamente com o capitão Piedade Faria, comandante da Companhia de Caçadores, “negociaram a rendição e acabaram por ser presos connosco”, revelou o general, também um dos oficiais presos.
Afinal uma conclusão positiva no que podia ter sido um prenúncio de uma derrota
Concluindo, Matos Coelho afirmou que o 16 de Março, pela forma “como foi preparado em casa do major Monge, dificilmente poderia ter um resultado diferente”. Sobre o envolvimento do Regimento das Caldas, “este resultou da vontade colectiva de participar numa operação do Movimento dos Capitães, que julgávamos ter sido decidida pela Comissão Coordenadora”.
Apesar do insucesso do 16 de Março e “do perigo que ele poderia ter representado para o “Movimento”, este acontecimento, na opinião de Matos Coelho, foi importante, pois “pôs em evidência a fragilidade do regime e permitiu ver como o governo organizou a reacção a um movimento militar, tendo dado inspiração para a elaboração do novo plano e operações”, rematou.
O presidente da Câmara, Tinta Ferreira, que encerrou a sessão sublinhou a importância do 16 de Março como momento impulsionador da Revolução de Abril tendo ainda acrescentado que um dia haverá uma versão oficial dos acontecimentos do 16 de Março e que esta irá sublinhar o facto de “um grupo de militares corajosos ter partido das Caldas, rumo a Lisboa, e que tomou a iniciativa de mudar as coisas para melhor”.
Natacha Narciso
nnarciso@gazetadascaldas.pt

































