O 16 de Março e o 25 de Abril revisitados

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25-abrilO CCC voltou a ser o palco escolhido para mais uma iniciativa da Gazeta das Caldas, integrada no programa da cidade que assinala os 40 anos do 16 de Março e do 25 de Abril. No passado dia 5 de Junho, o pequeno auditório não foi suficiente para receber todos os que quiseram assistir à apresentação da reedição do livro “O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril” (Editora Planeta).
Estiveram presentes Avelino Rodrigues e Cesário Borga (co-autores do livro) e os coronéis Vasco Lourenço, Gonçalves Novo e Carlos Clemente que pertenceram ao Movimento das Forças Armadas (MFA).
Avelino Rodrigues, que foi pároco nos Vidais e capelão no RI5 em finais dos anos 60, defendeu a sua tese de que a génese do MFA esteve nas Caldas tal como contou à Gazeta das Caldas na sua edição de 25 de Abril e voltou a afirmar na sessão do CCC.
O orador da noite foi sem dúvida Vasco Lourenço, um dos mentores da revolução. Durante a sua intervenção e já na fase de debate, o militar revelou-se um excelente comunicador e contador de histórias, tendo revelado episódios da conspiração que deu lugar ao 25 de Abril.
Apesar da imensa desilusão que a sociedade sente hoje em relação ao poder politico, Vasco Lourenço diz que “não se deve pedir acção aos militares” e que “desta vez tem que ser o povo a agir, usando os instrumentos próprios do regime democrático”.
A assistir estiveram muitos caldenses de vários quadrantes políticos e sociais e ainda três turmas de Escola de Sargentos do Exército.
A  sessão começou com um apelo aos sentidos através do visionamento de um filme dos anos 40 sobre a vida nas Caldas durante a estadia dos refugiados fugidos da II Grande Guerra.
Por toda a plateia ouviram-se comentários de surpresa por estas imagens que estão online no Museu do Holocausto dos Estados Unidos, mas que eram desconhecidas dos caldenses.
Após as palavras de parabéns à Gazeta das Caldas pelas iniciativas do 40º aniversário de Abril, o presidente da Câmara, Tinta Ferreira, comentou aquelas imagens, dizendo que “foi muito interessante assistir ao filme pois revela a vivência das Caldas e a importância que teve a passagem dos refugiados da II Grande Guerra e a forma como contribuíram para o crescimento da localidade”.
De seguida falou Ana Pereirinha, da Editora Planeta, responsável pela quinta edição de “O 25 de Abril e o Movimento dos Capitães”. Esta contou que tinha nove anos quando se deu a revolução e por isso é para ela uma honra reeditar esta obra. “Foi algo muito gratificante para a minha carreira”, disse Ana Pereirinha, acrescentando que espera que os leitores gostem da forma como o livro “está vestido, cuidado e acrescentado pois foi feito com muito prazer e um carinho especial”. Quanto ao conteúdo, garantiu que “não perdeu nem uma pitada da importância que teve porque este é o livro mais vivo, importante e imediato sobre a Revolução” dado ter sido “vivido nas ruas, no próprio momento e é também uma obra basilar do jornalismo contemporâneo”.

As Caldas na origem do 25 de Abril 

25-abril-2Avelino Rodrigues, um dos autores da obra, disse que “estava destinado a bater com os ossos aqui nas Caldas e a fazer alguma coisa nesta zona”. Contou que já no seminário tinha apreciado as aulas de dois padres caldenses, José Rosa e Felicidade Alves, sem esquecer que na paróquia da Estrela, onde também foi pároco, também teve um caldense, seu superior, Eduardo Matos, que era um defensor do regime e não lhe facilitava a vida. Na sessão recordou o seu trabalho no RI5 (que decorreu muito bem devido ao bom relacionamento que tinha com os comandantes) e como acabou por constituir um grupo de amigos oficiais que se reunia na casa paroquial dos Vidais e mais tarde na Matoeira “onde o António Jacinto aceitou o meu desafio de fazer um restaurante reservado”.
“Nestes encontros discutia-se tudo noite dentro”, disse. E foi aqui que jovens oficiais saídos da Academia e que ainda não tinham sido mobilizados para a guerra no Ultramar começaram a contestar a estrutura e a disciplina militar daquele tempo. Na sua opinião, foi aqui que se começou a germinar o MFA pois via os militares a tomar posições e a contestar a ordem das coisas numa fase que correspondeu a uma “inquietação ética” dos futuros capitães.
É por isso que Avelino Rodrigues diz que o 25 de Abril é um rio com vários afluentes, mas que o mais importante é o afluente das Caldas da Rainha, que teve início nos anos 60.
“Sinto-me feliz por ter assistido aos primeiros passos da revolução já que grande parte dos militares do 25 de Abril estiveram ou passaram pelo RI5 nas Caldas”, disse.

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Um livro escrito a quente

Cesário Borga, jornalista e co-autor do mesmo livro, fez a sua intervenção com base nas imagens dos acontecimentos relevantes que antecederam, aconteceram e se sucederam à revolução e que se encontram no livro. Foram vistas e comentadas fotografias da crise académica de 1962 que, na sua opinião, é o grande acontecimento que se segue às eleições onde concorre Humberto Delgado (1958) e onde se destacaram figuras como Jorge Sampaio (que viria a ser Presidente da República) e ainda da repressão policial que foi feita durante uma congresso da oposição que teve lugar em Aveiro em 1973 e que Cesário Borga assistiu pois encontrava-se a fazer a cobertura para o Diário de Lisboa.
Não podiam faltar fotografias do 16 de Março e respectiva identificação dos protagonistas, bem como imagens do 25 de Abril, de Salgueiro Maia, dos tanques no Terreiro do Paço e no Largo do Carmo e dos militares com os cravos vermelhos.
Cesário Borga, Avelino Rodrigues e Mário Cardoso (ausente da sessão por estar em Macau) eram na época  três jornalistas do Diário de Lisboa e, segundo o primeiro, “a nossa ideia era fazer uma reportagem sobre como se processou o 25 de Abril”.
Depois de terem entrevistado vários protagonistas e de recolher vários documentos, lançaram mãos à obra para fazer  este “Movimento dos Capitães”, uma obra feita a quente, em cima dos acontecimentos. “O 28 de Setembro estragou-nos os planos” e por isso a primeira edição deste livro viu luz em Novembro de 1974 e depois seguiram-se mais duas edições em 1975.

O “R-Ai-Five” das Caldas

Vasco Lourenço foi o orador da noite. Começou por saudar os jovens da ESE presentes na sessão e dar a conhecer à plateia que veio para o RI5 em 1965 para criar o Centro de Instrução do CSM (Curso de Sargentos Milicianos).
O hoje coronel entrou no RI5 como alferes e saiu como capitão e que na época os militares lhe chamavam, em jeito de brincadeira, o “erre ai five” pronunciando RI5 em inglês.
No início da sua intervenção fez também uma alusão ao filme dos anos 40 “que me fez lembrar que as Caldas era uma cidade muito mais aberta que as restantes do país e que já na altura se dizia que era por influência dos refugiados”.
Caldas era então das poucas cidades fora de Lisboa e Porto que tinha “boites”. E localizou-as: o Inferno da Azenha na estrada Tornada e o Ferro Velho no Avenal.
Vasco Lourenço sublinhou a sua ligação à cidade onde “viveu grandes momentos” e onde conheceu a sua mulher que era então “professora primária em Alvorninha”.
Os militares saídos da Academia preferiam as Caldas da Rainha a outros locais como Mafra ou Tavira.
Indo ao encontro das palavras de Avelino Rodrigues, o coronel acabou por reconhecer que era nas Caldas que se encontravam muitos militares que estiveram no núcleo das operações da revolução. “Foi no quartel das Caldas que encontrei camaradas que mais tarde fizeram parte do núcleo da conspiração”, disse, salvaguardando, no entanto, que na revolução participaram 5000 pessoas e “não foi uma acção individual, mas sim de todos”.

 Os militares devem servir o povo

Referindo-se ao presente, Vasco Lourenço foi muito crítico em relação ao poder político actual. Uma das razões dessa crítica é “a forma miserável como tem tratado os militares”, afirmou. E, num recado para os jovens futuros sargentos, disse que “os militares devem saber que têm o dever de servir o povo e não grupos de interesses”.
Se a situação do país continuar a degradar-se desta maneira, Vasco Lourenço acha que vão acontecer tumultos sociais fortes. “E nessa altura só espero que as forças armadas e de segurança não se deixem instrumentalizar por grupos, sejam eles quais forem”, disse.

O 16 de Março spinolista

Gonçalves Novo, que esteve envolvido nos acontecimentos do 16 de Março das Caldas da Rainha, contou que pertenceu ao movimento de capitães “que derrubou a ditadura devolvendo a liberdade e dignidade ao povo português”. Sobre o livro dessa noite, mencionou que este foi o primeiro a revelar os acontecimentos que conduziram ao 25 de Abril e que “não esgotou todos os assuntos que posteriormente têm sido aprofundados por vários investigadores, nacionais e estrangeiros, como Joana Tornada, investigadora caldense”.
Em relação ao 16 de Março, o militar afirmou que a maioria dos militares do RI5 estava convicta de que participava numa operação do Movimento de Capitães “com os mesmos objectivos dos que acabaram por sair das suas unidade em 25 de Abril”. O orador fez questão de salientar que nesta acção “não houve heróis destacados, mas sim uma partilha de acções, todas elas conducentes ao cumprimento da missão atribuída”.
Na sua opinião, “o 16 de Março foi um movimento falhado desencadeado pelo grupo spinolista enquanto o 25 de Abril foi um movimento vitorioso”. Contudo, ambos os movimentos tiveram como intervenientes oficiais do Movimento dos Capitães imbuídos da mesma vontade de derrubar a ditadura e até Otelo esteve envolvido nos dois.
Carlos Clemente, mais um dos militares que integrou o 25 de Abril afirmou que Vasco Lourenço “é o homem mais importante da Revolução” e que foi nas Caldas “que conheceu vários dos  elementos que fizeram parte do núcleo da revolta”. Como tal, este militar afirmou que  apadrinha a tese do Avelino Rodrigues, onde o mesmo refere que a génese da revolta tem passagem pelo concelho caldense.
O hoje coronel agradeceu muito às gentes das Caldas “pela  forma como me recebeu depois da guerra e que aqui me fez sentir em casa”, rematou.

O papel dos sargentos no 25 de Abril 

Na fase das perguntas e respostas, houve participações de gente de todas as idades. Uns  para relembrar as suas ligações a elementos de Abril, outros militares que fizeram parte dos acontecimentos para contar a sua versão do que então se viveu, e outros mais jovens, para questionar os convidados sobre o futuro do país.
Um dos jovens da ESE questionou a mesa explicando que era uma honra estar nesta sessão onde estavam militares “que mudaram o país com a sua acção”, perguntando de seguida qual tinha sido o papel dos sargentos no planeamento e na execução das acções de Abril.
Vasco Lourenço respondeu que o 25 de Abril, em termos de conspiração, “foi um movimento elitista porque foi feito por oficiais”. Isto no que diz respeito ao planeamento pois na acção os sargentos tiveram o seu papel, já que “nós sozinhos não fazemos nada”, afirmou.
Disse ainda que os sargentos milicianos, sendo mais jovens participaram com entusiasmo na revolução, mas que também é certo que os sargentos do quadro, mais velhos, mais acomodados e mais conservadores, não estiveram na primeira linha. “Esses eram chefes de família que não quiseram participar pois tiveram medo de arriscar”, contou.
Referindo-se às operações da madrugada de 25 de Abril, Vasco Lourenço disse que houve duas unidades que, contrariamente ao previsto não saíram para a rua: o regimento da Amadora e o quartel de Castelo Branco. E revelou que Jaime Neves, recentemente falecido, falhou a missão que lhe tinha sido atribuída de evitar a saída de blindados de Cavalaria 7. “Se ele tivesse cumprido tinha-se evitado o confronto dos blindados no terreiro do Paço”, afirmou.
Vasco Lourenço contou também que “os fascistas pregaram-me uma partida pois no 25 de Abril, em vez de estar no centro dos acontecimentos, eu estava nos Açores” para onde tinha sido compulsivamente transferido. O destino pregou-lhe ainda mais algumas partidas: “quando o Salgueiro Maia faleceu, eu estava em Jerusalém e quando morreu Melo Antunes, eu estava em Macau e portanto não os pude acompanhar”.

25 de Abril é irrepetível 

Sobre o 16 de Março, Vasco Lourenço disse que falhou por ter sido feito em cima do joelho e que funcionou como um ensaio “mas só à posteriori pois podia ter estragado tudo”.
O militar afirmou ainda que na História Universal “não há nada como o 25 de Abril onde os militares profissionais derrubam uma ditadura e transmitiram o poder ao povo através de eleições”. Considera esta revolução um momento único, que orgulha quem o fez, mas que por isso mesmo é também “irrepetível”.
Sobre a actualidade, o militar de Abril diz que  é necessário uma outra coisa e “não me parece que haja condições para serem os militares a fazê-lo”. Na sua opinião, tem que ser a população a fazê-lo, usando os instrumentos democráticos. “Estamos perante uma situação em que o poder perdeu a legitimidade politica, ética e moral”, disse.
Em sua opinião, os partidos políticos têm que se repensar e entenderem-se em volta do que é essencial. Para Vasco Lourenço, a população ainda acredita nos valores de Abril e estes são a liberdade, a solidariedade, a justiça e a justiça social.

Natacha Narciso
nnarciso@gazetadascaldas.pt

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