Carlos Querido
Nos cento e cinquenta anos do nascimento do Zé Povinho, ele que é tão nosso, a Gazeta das Caldas, bem mais jovem, não podia deixar de se associar no seu Centenário à celebração do aniversário de tão ilustre figura.
Há quem lhe censure a aparente submissão pacóvia, quem lhe critique o sorriso soez e matreiro que silencia a raiva e a revolta, quem não lhe perdoe a resignação com que arrasta a albarda onde confortavelmente se instala o poder, quem ache que o manguito e o ar resmungão são pouca resposta para tanta injustiça, quem lhe exija a frontalidade do verdadeiro contestatário, quem o queira diferente, mais irado, sem a paciência nem a humildade servil.
Na Exposição que decorre no CCC (de visita obrigatória), o curador Jorge Silva propõe-nos uma narrativa que se pode resumir assim: o Zé Povinho existe e ponto final; desde há 150 anos; a criatura sobreviveu ao criador; adaptou-se e resistiu a todos os momentos históricos; veio para ficar; em século e meio mudaram-lhe as roupagens mas nunca o carácter – persistentemente passivo, raramente indignado.
A figura pesada e tosca do Zé Povinho nasceu em A Lanterna Mágica de 12 de Junho de 1875, e a sua passividade e imobilismo já exasperavam o criador que criticava amargamente a criatura: «olha para um lado e para o outro e … fica como sempre … na mesma».
Foi sempre assim, tal como o conhecemos depois de ter atravessado mais de um século: o fatalismo a prevalecer sobre a audácia, o pessimismo a tornar inútil a indignação, o sorriso alarve a revelar a aceitação resignada de todas as desgraças que o poder lhe impõe.
Mas a passividade também é resistência e há no manguito sorrateiro uma surpreendente altivez, de quem, descrendo da sua capacidade para mudar as coisas, despreza o poder de quem governa o mundo.
Zé Povinho não reúne consenso nos tempos que correm e com frequência surgem verdadeiros manifestos contra a sua figura, que invariavelmente começam por lhe atribuir o honroso estatuto de identificação do povo português, e acabam a reclamar contra a sua falta de qualidades para tão nobre e exigente função.
Esquecem que cada um é para o que nasce, e que o pobre homenzinho rústico e atarracado não nasceu na época gloriosa dos descobrimentos, não tem vocação de marinheiro das sete partidas, nem grandeza para personagem de Os Lusíadas, porque é apenas produto do seu tempo, afinal tão próximo do nosso, que continua actual apesar de mais de um século de existência.
Os que criticam a sua figura têm medo que seja demasiado parecido connosco, que o lápis certeiro de Bordalo tenha captado na boçalidade resignada, uma característica da alma lusa.
Ramalho Ortigão sossega-nos a todos quando diz que o Zé «dorme, reza e dá os vivas que são precisos», e que nunca aspirou a chamar-se «simplesmente Povo».
Não será «simplesmente Povo», porque é mais do que isso, é o parente rústico e analfabeto que pode embaraçar-nos mas não deixa de estar presente de forma sólida e incontornável, e não adianta ignorá-lo, renegá-lo ou esquecê-lo, porque continuará a ser uma figura onde nos reconhecemos, por ser tão familiar, tão próximo, tão nosso.
Parabéns, Zé!

































