Visto da Foz – Um contributo provocatório

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Alberto Costa
advogado

Expedido dos EUA, chega-me aqui à Foz (fica para outro momento o estado dos nossos correios…) a edição cartonada de uma obra há pouco publicada, já com amplo eco na imprensa internacional, que vem lançar algumas pistas novas sobre realidades que tornam hoje mais complexa a matéria da «agenda da igualdade».
Com largo suporte estatístico, o seu autor, Richard Reeves, mostra como nos últimos cinquenta anos as mulheres «triunfaram» num sistema escolar largamente concebido por homens. Quer nos EUA, quer noutros países abordados, da Finlândia à Austrália, à luz de vários indicadores, o desempenho das mulheres no sistema escolar revela-se nitidamente superior ao dos homens – e mesmo naquelas áreas limitadas onde a tradicional vantagem masculina se vem mantendo, o panorama está a evoluir de ano para ano.
Também em Portugal se poderiam apontar vários dados sugestivos no mesmo sentido. Refiro só – porque esse não é o assunto – que mais de 60% dos que, entre nós, possuem estudos superiores completos são do sexo feminino. O que comporta alguma «ironia da História» num país em que o salazarismo «elevou» a escolaridade obrigatória de três para quatro anos em 1956… apenas para o sexo masculino!
Há diversos factores a contribuir para a melhor «performance» feminina, mas Reeves – também com fundamentação científica pesada – confere especial relevância ao facto do desenvolvimento cerebral ser mais precoce na mulher. E, entre várias outras medidas, acaba mesmo por preconizar, polemicamente, que as crianças do sexo masculino entrem um ano mais tarde na escola. Terá sido aconselhado por muitos a não publicar o livro, e muito menos a divulgar essa proposta – mas aí o temos, a provocar reflexão e controvérsia. Um artigo recente no «Le Figaro» é disso ilustrativo.
Sucede que, numa vida anterior, já tive que lidar, no âmbito dum processo de reforma, com uma situação com alguns pontos de contacto – sublinho: com alguns pontos de contacto – com a problemática que é versada na obra de Reeves. Aproveito o pretexto que esta obra «provocadora» representa para, sumariamente, o evocar.
No princípio deste século, as admissões no Centro de Estudos Judiciários (CEJ)– onde se formam os nossos juízes e procuradores – estavam a registar maiorias femininas esmagadoras. De 25 % de homens admitidos alguns anos antes, chegava-se em 2007 a uma situação em que as entradas masculinas não atingiam os 16 %. E isto numa altura em que a presença feminina nas magistraturas – só tornada possível com o 25 de abril – já era maioritária.
Baixava ao mesmo tempo a média das idades à entrada: não obstante a introdução da exigência, bastante discutível, dos candidatos já terem concluído a licenciatura há mais de dois anos, aproximava-se então dos 26 anos. Já ao tempo alguns especialistas consultados defendiam que quanto mais cedo se fizesse a selecção para a entrada mais adversas seriam as condições para os candidatos do sexo masculino.
Na reforma levada a cabo em 2008, que ainda vigora, com a consagração inovadora de uma «via profissional» (ao lado da «via académica») pretendeu-se incentivar a chegada às magistraturas de pessoas com mais experiência e idade – contribuindo também por esse meio para favorecer a diversidade e um menor desequilíbrio entre sexos na magistratura do futuro.
Os últimos números que se conhecem apontam agora para idades médias de entrada no CEJ sensivelmente mais altas (um pouco acima dos trinta anos) mas indicam melhorias menos pronunciadas no que toca ao desequilíbrio entre sexos. No actual curso 2021-2023, a participação do sexo masculino está, salvo erro, nos 24,3 por cento. No mínimo, é caso para perguntar: em que ponto estaríamos se não tivesse sido aberta a «via profissional» (mal recebida por alguns, deve notar-se) e prosseguissem, sem alterações, as condições de selecção do período anterior, que já nos tinham levado aos 16%?
O tema da «feminização da magistratura» (mais de 60 % quer na judicatura quer no Ministério Público, menos de cinco décadas depois da vencida a proibição salazarista-marcelista de mulheres nas magistraturas!) é complexo e não pode ser avaliado sem se ter em conta fenómeno análogo, a montante, na frequência e desempenho nas faculdades de direito – o que volta a apontar para a «performance» feminina no sistema escolar, de que Reeves se ocupa. Contudo, o caso extremo do CEJ, em razão do conjunto dos dados actuais, é suficientemente revelador das tendências em curso – e eloquente acerca dos efeitos a prazo no sistema de justiça – para dever merecer atenção prioritária.
Mas agora, como leitor de Reeves, tudo o que de prudente me pode caber é sugerir a tradução e publicação, entre nós, da obra «Of Boys and Men»…■

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