Alberto Costa
advogado
Gestos amáveis fazem-me chegar recentes livros de memórias de antigos companheiros de lides públicas. Cita-se num deles um passo do «Livro do Desassossego» em que se compara a vida a uma viagem a bordo de um navio «onde devemos ter, uns para outros, uma amabilidade de viagem»: um Pessoa bem escolhido, que aqui invoco também.
A Foz é um cenário ideal para enfrentar livros que as vicissitudes da viagem nos tenham levado a ir adiando. No meu caso, tinha chegado há pouco a vez de «O passado é um país estrangeiro» – um clássico que, na síntese do autor, anda à volta de «querer, disputar, conhecer e refazer o passado». Em vez de retirar disponibilidade, a obra de Lowenthal (660 pp.) só redobra o interesse por livros como os agora publicados por António Correia de Campos («Memórias I. De Viseu até ao II Governo de Guterres», 695 pp.) e Eduardo Ferro Rodrigues («Assim vejo a minha vida. Memórias», 375 pp.). Interesse que, em qualquer caso, seria certo: tendo todos começado no movimento estudantil, em momentos diferentes, os nossos mundos encontraram-se no final dos anos oitenta. O traço de união foi Jorge Sampaio – companheiro de lides estudantis de António e, no caso de Eduardo, de um anterior projecto político – e a singular direcção do PS em que nos incluiu. Foi um período relativamente curto, a preceder a década de Guterres – que por sua vez voltaria a «chamar-nos» a todos, também em diferentes momentos, para tarefas mais pesadas. Isto para o registo de interesses…
O que mais me prende nestes escritos não é o que se liga ao «cursus honorum» excepcional de um e outro, cada um na sua pista própria, nem ao perfil público que ao longo de décadas foram erguendo. É a viagem, com os seus autores, para o interior da sua memória e do seu mundo – da vida pessoal, familiar e profissional aos contingentes contextos em que surgiram as opções que publicamente foram assumindo. Cada um a seu modo, eles partilham nestes livros a forma como «vêem as suas vidas», numa impressionante variedade de dimensões. Partindo, num caso, do menino do interior profundo e, no outro, do «rapaz de Lisboa” com educação no Liceu Francês, sente-se bem que olham ambos para o longo caminho percorrido com a consciência – em expressão que peço de empréstimo – de «homem cumprido».
Todas as memórias envolvem alguma dimensão daquele «ver-é-ser-visto» de que falava Eduardo Lourenço («Ver é ser visto. Fragmentos Essenciais», 2021). Mas aqui temos bem mais do isso: temos privilegiados testemunhos para o conhecimento do nosso passado recente, de há muitas décadas para cá, e de protagonismos e narrativas que foram emergindo. Caminhando sobre o muro estreito que às vezes separa memória e história, eles ilustram com brilho o que sobre o tema escreve o historiador Pierre Nora: «a nossa percepção do passado é a apropriação veemente daquilo que sabemos já não nos pertencer». Nada como demorar o olhar sobre lagoa para o compreender. ■

































