Eu, Emília Carreira Beato do Sacramento, vou contar um pouco da minha vida. Eu no Reguengo da Parada trabalhava a dias, de sol a sol, e tinha que ganhar para comer. Vi-me perdida e tinha pessoas que me ajudavam. A assistência social dava-me leite em pó para eu dar aos meus filhos. Um dia, na Praça do Peixe antiga, encontrei uma amiga, a Maria Alice, que era chefe da cozinha da Escola Bordalo Pinheiro, que me disse assim: “Emília queres ir trabalhar para a escola como ajudante de cozinha?”. E eu disse que ia com todo o gosto se a minha prima que eu lá tinha em Caldas me desse um cantinho para eu e os meus filhos viverem.
Fui ter com ela e ela deu-me o sótão sem água nem luz, nem casa de banho. Tinha uma sanita num cantinho debaixo da escada. Tomávamos banho num alguidar na divisão onde fazia o comer.
Tenho que dizer porque vivia sozinha com os meus filhos: casei com 18 anos e o meu marido era muito mau com o vinho, tratava-me muito mal e o que ele ganhava era para o vinho e aguardente. Tive que ir viver para uma casa que nos deram ao pé de uma irmã minha. Antes de ir para a escola em Caldas, o meu filho ia buscar bocaditos de lenha para a noite eu fazer o comer. Andávamos vestidos com roupitas que nos davam. Foi uma vida cruel. No fim de três anos é que a nossa vida mudou. Entrei com 33 anos na cozinha como ajudante e os meus filhos seguiram para a escola primária em Caldas tirar a 4ª classe.
Eu fui levada ao director, que era antes do Dr. Sá Lopes, pela amiga chefe da cozinha que me levou para lá. E o senhor director disse-me que a escola ajudava-me na educação dos meus filhos, dava-me uma sopa para o nosso jantar e eu fiquei muito contente e disse-lhe que tudo ia fazer para que os meus filhos não passassem o que eu passei.
Ao fim de um ano de ajudante de cozinha, a cozinheira adoeceu e eu fiquei a substituí-la. Eu fiquei assustada, mas não tinha outro remédio. Tinha cinco ajudantes que eram muito boas e trabalhadoras que me ajudavam. Tínhamos mais de 300 alunos, era o Ciclo Preparatório junto, e os meus filhos já lá estavam e almoçavam lá. O meu filho tinha bolsa de estudo e por ser o melhor aluno da escola recebia 100 escudos de prémio ao fim do ano.
Um dia chegou da escola e diz-me: “Ó mãe eu gostava de ir para Lisboa estudar”. Mas como? “Nas férias vou trabalhar para ganhar alguma coisa para a casa”.
Eu ia passar roupa a ferro para a D. Salete, das senhas, que morava na Qta. de Sto. António e era a esposa do Sr. Sales. Era professora lá na escola e era irmã da D. Helena do Sr. Gouveia, que era chefe da secretaria da escola e que me trataram tão bem durante 28 anos que lá trabalhei.
No Verão eu tinha três meses que não ganhava. Eram as férias grandes. Então eu ia limpar casas, mas a D. Alice Freitas pediu-me para eu ir tratar da D. Henriqueta, da Garagem Caldas, que estava doente. Eu fui, mas não me aguentei. Ela estava muito difícil. Nos outros anos fui trabalhar para a Foz, fazer comida para uma família de Lisboa e das Caldas que vinham dois meses de férias da escola.
Um dia eu estava ao portão da vivenda da minha prima, era 15 de Agosto, a ver o movimento de carros, e um vizinho que era viúvo disse-me se eu queria casar com ele. Eu respondi: “não quero mais marido nenhum” e voltei para casa. À noite os meus filhos estavam a falar do casamento da minha filha, que era para o ano seguinte e eu contei que fui pedida em casamento. Diz o meu filho: “foi o vizinho, não foi? Talvez fosse bom, parece boa pessoa e eu vou para Lisboa e a minha irmã vai casar. Sempre era uma companhia”. Eu não liguei mais ao assunto. Mas ao fim de um ano casei com ele pelo civil e estive casada quase 35 anos. Foi uma boa companhia, muito educado. Era meu amigo, faz-me tanta falta…
Os meus filhos têm a vida deles e agora eu tenho de ir para um lar. Não tenho outro remédio, mas que fosse só para o fim da minha vida. Eu e os meus filhos lutamos tanto para que não passassem o que eu passei.
O meu filho trabalhava na Fiat em Almada e ia ter aulas a Cabo Ruivo e mais para o fim do curso dava aulas na escola onde eu trabalhava.
A minha filha tirou o Magistério Primário e andou por muitas terras longe. Foi tudo com muito sacrifício.
Agora eu tenho 83 anos e fui operada a um cancro à garganta no IPO em Lisboa. Já levei 34 tratamentos e estive no lar do IPO mais de um mês para os fazer. Tenho muita dificuldade em falar, vejo mal, tenho uma catarata em cada vista e não posso ser operada. Já fui a três médicos da vista e todos dizem que posso ficar sem ver. Cá vou indo sozinha e triste com a minha vida. Vou entrar na Santa Casa dia 3 de Abril.
Quem nasce sem sorte é assim até ao fim da vida.
Emília Sacramento
































