Uma Vida a Ler

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Isabel Xavier
professora

Levantei os olhos do livro que lia com entusiasmo crescente, a fim de admoestar a minha avó: – “avó, se é para estar todo o tempo a falar comigo e a perguntar-me coisas, vou-me embora!” – “Tens razão!”, respondeu a minha avó, e calou-se, dedicando a sua atenção a outra atividade, possivelmente um trabalho em renda ou em bordado, áreas em que era muito prendada.
Desde que de mim me lembro, lembro-me de ler muito, de ler tudo o que apanhava à mão, desde os livros para crianças às bandas desenhadas do Super Homem e do Pato Donald, desde os romances delicodoces da minha avó aos livrinhos da coleção “seis balas”, que o meu irmão mais velho escondia num caixote debaixo da cama. Estes últimos eram lidos às escondidas, pois calculava que não constituíam a leitura mais adequada para uma menina da minha idade. Quando via que a ocasião era propícia, e que não dariam por mim, subtraía um livro do caixote, lia-o durante vinte minutos e voltava a colocá-lo no seu lugar. Todo o esquema se gorou quando, face ao título de um desses livros, tive a péssima ideia de perguntar ao meu pai o que era um “parricida”. Em vez de me esclarecer, desatou a perguntar-me onde é que eu encontrara semelhante palavra, ao que eu tive de responder, pondo assim em causa todo e esforço despendido até então para ler aqueles livros de que tanto gostava, e que terminavam sempre pelo afastamento do cowboy ao pôr do sol, em direção à linha do horizonte, montado no seu cavalo.
Voltando àquele dia em que procurara refúgio em casa de minha avó, longe do alarido próprio de uma família numerosa, era apenas mais um dia de leitura, um dia em que por qualquer razão estava mais sensível à perturbação que o barulho causava. Lembro-me de que o livro que estava a ler, intitulado “O Príncipe e o Pobre”, narrava uma história muito intrigante, com personagens muito interessantes e um enredo repleto de peripécias, de um menino muito pobre, cuja existência chegou ao conhecimento do príncipe, e que era convencido por este a trocar de identidade com ele, dadas as inacreditáveis semelhanças físicas entre os dois.
Eu era tão pequena e tão pouco versada no mundo das metáforas e das metonímias, que ao ler que a mãe do menino pobre “roubava o pão à própria boca para o dar ao filho”, interpretei isso à letra, tendo pensado que tão inesperada quanto inconveniente prática do ponto de vista higiénico, só poderia dever-se ao facto de o pão já se encontrar demasiado rijo e de a mãe, em seu grande amor, querer desse modo torná-lo mais macio e mais facilmente consumível pelo filho. Ou seja, a minha visão alternativa e literal acabou por se revelar bem próxima da intenção inicial do autor.
Pela vida fora, sempre considerei esta minha propensão para a leitura uma benção.
Um dia, contei num círculo de amigos que Marco Aurélio terá dito a certa altura da sua vida: “Tenho que largar os livros!” Um dos presentes rejubilou: “É o que eu faço, visto que não leio!” “Pelo contrário – respondi eu – até a intenção de largar os livros te está interdita, visto que ao não leres, não tens livros para largar!” ■

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