Uma Jarra das Arábias, ou como evocar 107 anos sobre o falecimento de Rafael Bordalo Pinheiro (23 de Janeiro de 1905)

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ArábiasGomes de Avelar fecha a porta atrás de si, pára por momentos, enche o peito do ar, olha ao longe o movimento ondeante das árvores do parque das faianças e lança um profundo suspiro…

Está simplesmente estupefacto com o que acaba de ver. Tanto que ainda não está em si. Custa-lhe a acreditar que tivesse sido possível a Bordalo Pinheiro concluir tal jarra. É o que se pode apelidar, com toda a propriedade, de uma verdadeira jarra da Arábias!

Gomes de Avelar põe o chapéu na cabeça, endireita os óculos, balança a bengala e põe-se a caminho.

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Atravessa todo o espaço da Fábrica e começa a caminhar pela rua nova. No Hotel Madrid, volta à direita, desce a seguir o pequeno largo, passa junto à velha igreja do Espírito Santo e, em passadas de vigor inesperado, chega a casa.

Põe mãos ao trabalho: vai fazer a descrição da jarra, a tal jarra que o deixara verdadeiramente abismado, peça que quer ver publicada no seu próximo número de «Cavacos das Caldas» a publicação pela qual é responsável sob o nome de Belisário.
Ainda não vos disse de que peça se trata? Desculpem… Estou de tal modo fascinada pela jarra e surpreendida com a reacção do Ceramista/Jornalista Francisco Gomes de Avelar, que me esqueci de a referenciar: trata-se da Jarra Beethoven. Além do mais, um pouco de suspense proporcionado pelo cronista cria sempre uma maior expectativa no leitor.

ArábiasPosto isto, folheio o exemplar de «Cavacos das Caldas» (publicação quinzenal) datado de 12 de Agosto de 1896, e ofereço-vos para leitura o texto de Francisco Gomes de Avelar em que ele nos descreve a Jarra Beethoven.

Ei-lo:

«A nota mais palpitante que neste momento emociona as Caldas, é sem dúvida a maravilha, antes a conquista cerâmica arrojada, mais grandiosa e memorável que a fertilíssima e genial ideação de Bordalo Pinheiro, acaba de produzir.

Referimo-nos à jarra centro que o distinto artista expõe na Fábrica de Faianças, verdadeiro monumento de arte, de que nos permitimos simplesmente observar, como é nosso dever, gostoso, sincero, embora difícil de o praticamos ou cumprirmos, como o mereci, mais essa jóia cerâmica do Mestre.

A jarra centro de Bordalo Pinheiro é, sem receio de contradicta, a obra cerâmica de maior dimensão no género, que conhecemos. Tem de altura dois metros.

A fabricação dessa jarra é evidentemente um esforço notabilíssimo, mais do que isso, caracteristicamente único, da ideação prodigamente fértil de Bordalo.

Que preocupações não experimentaria ele na confecção da sua grande obra.

Só quem conhece de perto a natureza das argilas empregadas nessa jarra, pode avaliar as sensações que assaltariam o espírito de Bordallo, dai a série de incertezas no bom resultado da sua vitória artística.

ArábiasNa confecção da peça, na sua secagem, na modificação do forno onde devia sofrer a primeira cosedura, modificação que é sempre um caso provocante, d’um estudo muito bem cuidado em matéria de fabricação semelhante, no transporte para o forno, caso não menos grave, a cosedura em biscoito onde a graduação do calor do forno precisa d’uma escrupulosíssima atenção, na abertura d’esse forno depois dessa primeira cosedura onde há que evitar-se todo e qualquer resfriamento que pudesse prejudicar a peça, na volta d’esta para do forno para o local onde tem de ser vidrada, no resultado final, a cosedura depois da vidração.

A jarra representa, hão-de dar-nos licença que o digamos, a arte cerâmica cumprimentando a arte musical.

Dualisam-se n’essa obra, dois robustíssimos talentos, o de Beethoven e o de Bordalo.

Se o renome celebrou o primeiro pelo seu ultimo quarteto, não menos se celebra e consagra o segundo por esse hino d’arte, sintetizado nessa alegoria onde a fantasia do artista, s desprendeu das chamadas regras convencionais, para voar até ao seu sublime e brilhantíssimo ponte de vista estético.

O estilo da jarra será mais ou menos para os entendedores o de D. João V, para nós que o não somos, a nossa impressão a esse respeito, é que se essa jarra contem linhas desse estilo, vemos outras ali, onde há um cunho de originalidade única, e exclusivamente manifestante do notável sentir da alma d’artista de Bordalo.

ArábiasAo centro do bojo da jarra, vê-se em medalhão um camafeu delicadamente ornamentado, o perfil de Beethoven, sobre o medalhão em posição soberana e olhando o espaço, uma águia.

Na boca finalmente recortada da jarra e sobre uma espécie de ornato misulado, ajoelha a Fama, estendendo a mão direita onde segura a coroa consagratória de Beethoven.

Na base, o Tempo pára, como que a escutar a harmonia e melodia, cantando e tocando o último quarteto; aqui, ali e acolá, uma grinalda de flores seguras por anjos, completa em graciosas linhas a beleza deste conjunto.

De um dos lados do bojo, vê-se no cavado, em ornato pujante, a execução do celebre quarteto, por dedicadas figurinhas da época, encimadas estas pela figurada alada da regência, que empunhando a batuta como que dirigindo aquela execução. Do lado oposto, um grupo de figurinhas também da época entregues à ouvida dessa composição musical, que imortalizou o nome de Beethoven.

Eis a traços ligeiros, únicos com que os nossos poucos recursos nos autorizaram a reproduzir a nossa impressão, o que sentimos acerca da obra d’arte de Bordalo Pinheiro.

Consignado essa impressão, registamos assim, a nota por excelência, que veio consagrar a cerâmica das Caldas, envolvendo n’esse triunfo artístico a sua primeira individualidade, o seu primeiro Mestre – Bordallo Pinheiro.

E que nos releve S. Ex.ª a observação, onde com a espontaneidade que a dicta, vai compreendido o preito de sincera homenagem que por mais esta soberana manifestação do seu peregrino talento, nós, últimos representantes da imprensa local, daqui lhe endereçamos.»

E aqui está! Apresentei-vos uma das mais insignes obras bordalianas. Agora que já a conhecemos proponho-vos que apanhemos um avião e demos um pulinho ao Brasil para a visitarmos no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Aí verificaremos se Francisco Gomes de Avelar falou verdade ou não.

Despeço-me até uma próxima oportunidade.

Vou tratar dos bilhetes ……………………………………

* em viagem imaginada de Lisboa para o Brasil

PS: O texto transcrito obedece à grafia original.

Por: Isabel Castanheira*

 

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