
Rafael tirou a bata branca pintalgada de barro, vestiu o casaco e pegou na sacola com os lápis e pincéis. Juntou-lhes um carnet já com vários esboços, abriu a porta do seu chalet e, trancando-a atrás de si, meteu pés a penates. Não se esqueceu da bengala, arrumada a um canto, ao pé do bengaleiro.
Caminhando pelo parque das faianças, segue tão absorto que nem repara que cai uma humidade fininha e fria que faz com que pareçam de prata as folhas dos arbustos que ladeiam o chão de terra batida.
Não foi longe. A curta distância pela estrada, chegou a um pequeno chalet em madeira, ao estilo suíço, em tudo semelhante ao seu, construído junto à Fábrica. É a vivenda «Maria» do seu amigo Eça Leal.
Tilinta a sineta da cancela e o dono da casa vem recebê-lo com um abraço de boas vindas. Sentados nos canapés espalhados pela sala de estar, vários amigos do dono da casa cavaqueiam enquanto fumam e bebericam pequenos goles dos seus cálices de cristal.
As senhoras tomam chá e mordiscam, elegantemente, os scones quentes dispostos nos naperons de linho que forram os cestos feitos em verguinha das caldas, alguns deles com a assinatura das irmãs Mafra. Não perdem, naturalmente, a oportunidade de tagarelar sobre os últimos mexericos sociais, chegados da capital.
Há uma verdadeira festa quando Bordalo entra na sala: todos o cumprimentam efusivamente e o felicitam pelas últimas páginas de «A Paródia» que tinham provocado verdadeiro furor nas capelinhas de Lisboa.
Conhecedor dos hábitos do visitante, Eça Leal convida-o a sentar-se junto a uma mesinha de apoio, suficientemente grande para que ele possa abrir o seu carnet de esboços e comece a desenhar. Rafael não se faz rogado e espalha os crayon a jeito de uso.
D. Carolina, a anfitriã, sabendo dos gostos do artista, providencia para que junto dele seja colocado um tabuleiro com uma garrafa de «je ne sais pas quoi» e um pequeno cálice. É do conhecimento generalizado que Rafael Bordalo gosta de ir bebericando pequenas quantidades do cálice ali à mão enquanto vai rabiscando os seus desenhos nas folhas do carnet. Há como que uma ligação directa entre o líquido ingerido e a agilidade do traço que desliza leve, criando cenas que vão alegrar os seus mais fiéis leitores.
Gesticula, fala e ri enquanto desenha e vai transferindo para o papel a sua visão dos últimos acontecimentos políticos e sociais da semana.
De quando em quando, faz uma pausa, acende um cigarro, equilibra o monóculo, afasta a cabeça para observar o desenho a uma certa distância, faz um risco aqui e outro acolá, observa de novo, atira uma laracha e continua a desenhar.
Tinha que se despachar, pois no dia seguinte, logo pela manhãzinha, Avelino Belo, operário da fábrica e seu homem de confiança – e porque não dizê-lo, também seu amigo – tem que apanhar o primeiro comboio para Lisboa, para levar à tipografia as páginas que Rafael está a ultimar nessa noite.
Tocam as onze badaladas no relógio da parede e cresce o reboliço no grupo: todos começam a movimentar-se com a intenção de partirem para os seus locais de descanso.
Rafael arruma os lápis, ajeita as páginas e bebe um último calicezinho. Agradece aos donos da casa a sua hospitalidade, acena aos restantes convivas e parte em direcção ao Largo João de Deus, onde reside por esses dias.
Sobre o tabuleiro, poisado junto à mesa onde Rafael tinha estado a trabalhar toda a noite, a garrafa lá ficara vazia. E esta?
Podemos dizer, ao jeito do espírito malicioso vivido durante o serão, que calicezinho a calicezinho, até ao despojo total, alimenta Rafael a inspiração….
Isabel Castanheira
Nota: Esta crónica foi desenvolvida a partir da leitura do artigo «Visões do Passado – As Caldas da Rainha no tempo de Rafael e Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro» de Tomaz de Eça Leal, publicado n’«O Século Ilustrado» a 23 de Junho de 1945.

































