Um médico das Caldas na Grande Guerra

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Gazeta das Caldas

Militares em instrução em Bailleul-sur-Thérain

Sete militares em pose para a fotografia. Alguns deles encaram de frente a máquina que capta a sua imagem, outros desviam o olhar; alguns deles ensaiam uma pose descontraída, outros parecem tensos; alguns deles esboçam um sorriso tímido, outros estão sérios e de expressão severa. Os reveses da história e as circunstâncias das suas vidas pessoais juntaram-nos ali, partilham uma situação idêntica, formam um grupo, mas estão bem individualizados, não assumem a mesma postura, cada um opta pela que lhe parece mais adequada ao estado de espírito, ao momento e à situação em que se encontram.
A cena torna-se tanto mais paradoxal quando nos apercebemos de que a “trincheira” em que se encontram não é uma verdadeira trincheira, faz parte de um “cenário” montado nos “bastidores da guerra”, destinado ao treino de instrução para o verdadeiro cenário de guerra. Uma espécie de prévio “faz de conta” de algo muito real que os aguarda.
A decisão de Portugal participar na guerra colava-se ao regime republicano vigente. Os soldados chamavam à faixa de terra que os separava das trincheiras inimigas, “avenida Afonso Costa”, na precisa altura em que, afinal, o regime fora derrubado por Sidónio Pais (5 de dezembro de 1917), feroz opositor dessa participação. As contradições acumulavam-se e encontram (talvez) o seu ponto fulcral quando o mesmo Sidónio Pais promoveu grandes comemorações do armistício, em novembro de 1918, pouco tempo antes de ter sido alvo de um atentado que o vitimou, junto da estação do Rossio, em Lisboa (14 de dezembro). Talvez por isso também é que os portugueses preferiram sempre comemorar o 9 de abril de 1918, data da malograda Batalha de La Lys, uma data de derrota e de luto, do que o dia 11 de novembro, de libertação e vitória, mas demasiado conotado com o sidonismo.
É neste pano de fundo que se inscrevem e nos dão testemunho da realidade, as fotografias e as missivas trocadas entre soldados e respetivas famílias, amigos e madrinhas de guerra, num nítido reflexo das vicissitudes a que todos estavam sujeitos, agravadas pela peculiar vulnerabilidade das situações de guerra. É o caso de alguns dos trechos das cartas trocadas entre Fernando da Silva Correia e seus familiares. Note-se o tom pungente com que a mãe, D. Carlota, admoesta o filho em carta enviada a 10 de janeiro de 1918, poucos dias antes da sua partida para França: “Parece impossível que andes a tratar de ser mobilizado!” E depois de descrever o contentamento por ter tomado conhecimento de um lugar que poderia vir a ocupar em Coimbra, confessa a sua perplexidade pela opção do filho: “Nem podia acreditar em tanto bem e tu a dizeres que te convém o contrário! Pedir para ir para a guerra quando lhe offerecem um lugar cá! Só quem tem desgostos de família ou… alguma paixão!”
Outro caso em que as opções pessoais se cruzam com as situações mais gerais então vividas e que refletem as perceções das mesmas, é o de uma carta endereçada ao pai, Dr. Joaquim Correia, a 15 de janeiro de 1919, na qual o jovem médico desabafa o desencanto sentido face à situação política portuguesa: “Muito obrigada pelas festas que me mandou, com boas notícias lá de casa, felizmente, já que do Paiz não há maneira de as ter de geito. Ainda hoje novas notícias de desordens num jornal francez! Que tristeza! Se não fosse a Família nunca mais ahi voltava. Há muita gente que pensa como eu e alguns cá ficam devido a isso. Quando a gente pensava descançar e trabalhar em socego é que ahi se lembram de recomeçar revoltas, sei lá mesmo se a guerra civil.”
Um eloquente testemunho da instabilidade vivida em Portugal e dos ecos que dela havia em França, determinando a permanência de alguns soldados em território francês. Quem sabe se algum dos sete militares que se encontram na imagem…

Isabel Xavier

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