Na página 16 do livro «Mau tempo no canal» Vitorino Nemésio (1901-1978) escreve que «sete anos nas ilhas dão grande fundura ao tempo». Na verdade ali o tempo é outro em todos os sentidos. Ora este livro de Fernando Aires (1928-2010) é um «Diário» de mais de 700 páginas cobrindo um certo tempo açoriano de Dezembro de 1982 a Maio de 2010.
Um dos aspectos curiosos deste livro é a reflexão sobre o próprio «Diário» que Fernando Aires refere deste modo: «Estas linhas (bem ou mal) têm servido para dizer a todos que eu existo.» Noutra reflexão surge o Passado, o Presente e o Futuro: «O passado é uma perda e o futuro uma privação. Perda e privação, dois vazios que geram angústia. Só resta o presente – contingente, fugidio, dependente da trama que me transporta e que não foi inteiramente tecida por mim. E do modo como me prende, fica-me o sentimento da impotência, da provisoriedade, de que tudo se vive só uma vez para ser logo perdido. Era uma vez a vida…»
Mas o autor nunca se fecha em si mesmo pois sabe-se inserido num colectivo: «O português é assim. Escabuja, agita-se até ao paroxismo. Fala mal de tudo e de todos ameaçando céus e terra, afirmando que se ele mandasse, etc. Para logo depois, acalmado e quase feliz, aceitar tudo, resignar-se com tudo, contemporizar com o inimigo.»
A meditação sobre a escrita do Diário funda-se no «eu» e tem momentos de dúvidas («Ultimamente começo a manhã sem nada para dizer. A sensação de que já me esgotei. Procuro e procuro cá dentro. Nada – só areia e cardos.») mas depressa a razão de ser do percurso das vivências se impõe porque a finalidade da vida não pode ser apenas e só viver, daí a explicação: «Esta a razão de a gente se pôr a esculpir estátuas de deuses e a pintar retratos de homens. A compor poesia, prosa e sinfonia.»
O testemunho pessoal não fica de fora neste volume. Vejamos um aspecto do retrato de Zeca Afonso na página 74: «Nele, sempre vi o exilado de uma pátria, cujas fronteiras só ele conhecia até onde. Sentimental e idealista, descosia-se pouco com a maioria dos companheiros que não lhe acompanhavam os sonhos nem sintonizavam em identidade de projectos. Sempre me fascinou nele um certo mistério, um certo ar dilacerado por tragédias ocultas, um certo lago secreto de palavras não ditas.» Nota final: As 16 páginas com fotografias tornam este livro algo mais que um diário – uma fotobiografia.
(Editora: Opera Omnia, Prefácio: Eugénio Lisboa, Posfácio: José Leon Machado, Apresentação: Onésimo Teotónio Almeida, Notas da contracapa: João de Melo, Eduíno de Jesus e Eugénio Lisboa, Coordenação: Maria João Ruivo Sousa Franco, Capa: João Ramos)

































