Tempos de Mudança

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Em 1970 morreu António de Oliveira Salazar. Nesse mesmo ano, o Papa Paulo VI recebeu os representantes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, houve manifestações contra a guerra colonial e foi fundado o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado). No ano seguinte, 1971, as universidades portuguesas contavam com a presença constante de forças policiais fardadas e à paisana, com destaque para a PIDE-DGS. Em 1972, o estudante Ribeiro Santos foi morto a tiro, por membros desta mesma polícia, no interior das instalações da Universidade de Lisboa e foram presas cerca de setenta pessoas, por se terem reunido na Capela do Rato em nome da paz.
E no Externato Ramalho Ortigão, onde eu então estudava, passar-se-ia algo de análogo? De que modo refletiria esse “pequeno mundo” as transformações gerais que à sua volta, e designadamente no meio estudantil, indiciavam o começo do fim da ditadura? O Padre Xico, mais moderno, substituíra o Padre Albino como diretor. As raparigas usavam mini-saia, maxi-saia ou calças; os rapazes deixavam crescer o cabelo e todos (menos eu) – rapazes e raparigas – fumavam desalmadamente, como se não houvesse amanhã, às escondidas, nas casas de banho do colégio.
Além das significativas mudanças já enunciadas, outro facto marcante dos novos tempos que se viviam, no colégio, entre 1970 e 1972, foi a integração no seu corpo docente de uma nova geração de professoras, entre elas a Dra. Noémia e a Dra. Júlia, que lecionavam, aliás com competência inquestionável, respetivamente, as disciplinas de História e de Português.
Cada uma à sua maneira, e por motivos distintos, se distinguiam dos professores a que estávamos habituados. Desde logo, pelo aspeto físico: a Dra. Noémia tinha um ar arrapazado, andava sempre de calças; a Dra. Júlia usava brutas mini-saias, blusas decotadas e até mesmo de alças (ai se o Padre Albino visse….). Depois, pelo modo como se relacionavam com os alunos. Mesmo eu, pouco dada a folias, me lembro de ter integrado um grupo responsável por um “assalto” de Carnaval a casa da Dra. Júlia. Dançámos, comemos, bebemos e lembro-me até de o Henrique Conceição, enquanto o meu namorado se afastou por qualquer motivo, me ter vindo dizer com indiscutível convicção e uma voz algo arrastada: “Tu é que és boa rapariga, tu é que és mesmo boa rapariga!”. Valeu-me o Chico Carrilho que nos “separou”, ao mesmo tempo que dava razão ao Henrique. Fez bem, há certas ocasiões em que as pessoas não devem ser contrariadas, principalmente quando estão cobertas de razão.
.Já em casa da Dra. Noémia, a que também cheguei a ir com outros colegas, lembro-me de lá ouvir canções revolucionárias, as inconfundíveis músicas do cancioneiro anti-regime. Noutro registo, mas não menos interessante, lembro-me de ter sido aí que pela primeira vez ouvi Leonard Cohen, num disco levado pela Dra. Carmen, nossa professora de Inglês, deixando-me encantar (até hoje) pelos belíssimos poemas e melodias das suas baladas. ■

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