Sobre o futuro do Hospital Termal Rainha D. Leonor, o que fazer?

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O cirurgião Mário Gonçalves, que desempenhou o cargo de Director do Hospital Termal e Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, dirigiu ao nosso jornal um extenso testemunho sobre o candente problema das Termas Caldenses. Publicamos na página de internet da Gazeta das Caldas a versão completa, a que os leitores interessados poderão aceder.

Pugnar incessantemente pela sua reabilitação, procurando promover as acções imprescindíveis, inadiáveis, que possibilitem reconduzir a Instituição a um nível que seja consentâneo com os pergaminhos que dominam a História do Hospital Termal Rainha D. Leonor (HT). Na época actual, cabe-nos a responsabilidade de, não só honrar o seu inigualável passado, mas o de assumir, como desígnio, a justa ambição de avançar para o futuro com a fundada esperança numa inovação que concretize planos e, globalmente, incentive o seu progresso.

Caldas da Rainha deve a sua existência à Fundação do Hospital Termal, inédita no Mundo; foi também nesta Cidade, de tão recuadas tradições no domínio hospitalar, que foi criado pelo Decreto-Lei n.º 84/71 de 19 de Março, o primeiro Centro Hospitalar do País, o Centro Hospitalar das Caldas da Rainha (CHCR), destinado a integrar os estabelecimentos hospitalares aqui existentes. Desde a década de setenta do século passado, os ajustamentos sucessivos do quadro de Pessoal do CHCR, dotaram-no com os recursos humanos qualitativamente adequados, a fim de dar resposta às crescentes responsabilidades, que são as resultantes da sua progressiva e irreversível diferenciação. Esta circunstância, deu ensejo à integração no seu quadro comum, de áreas funcionais as mais adequadas ao desempenho da sua missão assistencial.No quadro de Pessoal do CHCR, formalmente aprovado pela Portaria n.º 541/96 de 3 de Outubro, figuram vinte e quatro Especialidades Médicas, de entre as quais se encontram e não por acaso, aquelas cujo exercício, numa perspectiva de complementaridade, se coadunam com os actos clínicos e as prescrições terapêuticas, que se realizam no HT.

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O Hospital Termal, o único que, com a sua vocação, se encontra sob a tutela do Ministério da Saúde, possui o Estatuto de Hospital Central Especializado. Não se trata de uma designação honorífica, antes confere a garantia de que os Doentes só podem ser admitidos a tratamento com a prévia e obrigatória avaliação médica, a qual, sendo especializada, assegura que as respectivas prescrições preenchem os critérios clínicos adequados, considerando as patologias de que os Doentes são portadores. A confiança firmada na eficácia terapêutica da sua Água Mineral Natural, fundamenta o recurso às técnicas de Crenoterapia, as quais, complementadas com as de Medicina Física e de Reabilitação, se encontram clínica e cientificamente certificadas, firmando a reputação do HT. O desígnio de promoção da melhoria de qualidade de vida dos seus Utentes, da prevenção, da reabilitação e da cura, sobretudo de doenças músculo-esqueléticas, do foro reumatismal e do foro respiratório, tem sido uma constante na sua evolução, mantendo as características que marcam o seu aparecimento pioneiro, acompanhando o movimento científico na esfera da sua actividade, de uma forma adaptada ao saber de cada época. Tem sido assim desde a sua fundação.

Neste aspecto, a criação do CHCR proporcionou ao HT um importante contributo, permitindo-lhe o encontro com um novo fulgor, científico e técnico. O inter-relacionamento assim estabelecido, encontrava-se consolidado, revelando-se profícuo, a avaliar pelo expressivo aumento da frequência termal, verificado a partir no final da década de 70 do século XX, tendo alcançado, nas décadas de 80 e de 90, valores situados acima dos 8000 Utentes /ano, atingindo o valor de mais de 9000 no ano de 1988. Em 1995 foram tratados 8131 Doentes, dos quais 3102 permaneceram no próprio internamento que existia no Hospital Termal e 5029 frequentaram a Estância por via do ambulatório. No mesmo ano de 1995, os Doentes tratados no Hospital Termal foram provenientes de dezanove distritos do País e do total, 3055 fizeram tratamentos pela primeira vez (270 no internamento e 2785 no ambulatório).

Esta situação, que correspondeu ao segundo lugar no respeitante ao movimento assistencial das Termas do País, manteve-se até ao encerramento do Hospital Termal, em 30 de Janeiro de 1997, por motivo da contaminação bacteriológica da rede de distribuição da água mineral natural.

Uma vez debelada esta contaminação, seria expectável que a frequência termal aumentasse progressivamente, considerando o crédito estabelecido, por razão do reconhecido valor terapêutico da Água Termal. Porém, no decorrer da primeira década do século XXI, o HT acolheu, no máximo, 1775 Doentes, no ano de 2006. Talvez não haja memória de uma tão baixa frequência, facto que representa uma ameaça de decrepitude que urge vencer, por imperativo de salvaguarda de um Bem de diversificado valor Patrimonial, tanto material como imaterial.

Circunstâncias adversas, por vezes perversas, têm obstado ao despertar para uma nova época, que permita restaurar o prestígio justamente firmado pelo Hospital Termal Rainha D. Leonor, ao longo da sua existência multissecular, durante a qual o Estado nunca lhe negou, por bem, o apoio que é devido ao exercício da sua actividade.

No dealbar do século XXI surgem indícios de que estes elos podem estar para ser quebrados por intenção tutelar, facto lamentável que reflecte uma insuficiente identificação com a ímpar relevância que, no domínio assistencial, o HT tem desempenhado no nosso País, desde a sua fundação, em 1485, até à actualidade.

A Portaria n.º 83/2009 de 22 de Janeiro, que criou o Centro Hospitalar Oeste Norte (CHON), ao extinguir o CHCR, regista, no respeitante ao Hospital Termal e ao seu vasto património, que “a solução de integração ora decidida, não prejudica o perspectivar de um futuro desenlace para aquele património, já que não constitui vocação primária do Ministério da Saúde, a gestão e exploração deste tipo de equipamentos”. Mais recentemente, a Portaria n.º 276/2012 de 12 de Setembro, ao criar o Centro Hospitalar do Oeste (CHO), com a consequente extinção do CHON, reproduz, nos mesmos termos, a solução apontada pelo legislador na Portaria antes mencionada, realçando que foi desde logo reconhecido o carácter sui generis das componentes que integravam o novo CHON.

Tão momentoso assunto, porque deixado ao livre arbítrio e ao preconceito do poder decisório, tem sofrido um progressivo desgaste, uma desmotivação e incerteza, que conduziu à inércia.

Perante as circunstâncias actualmente existentes e uma vez que foi extinto o Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, tem sido revelada a inadequação da integração no CHON e, agora, no CHO, do Hospital Termal Rainha D. Leonor, o qual, respeitando a sua dependência hierárquica, deveria retomar a autonomia administrativa, financeira e patrimonial, sob a direcção de um Órgão restrito, competente, com um mandato preciso e a reconhecida acuidade para cumprir objectivos que conduzam à credibilização da actividade do HT, inclusive no respeitante à inequívoca capacidade de que dispõe para responder às exigências do termalismo de natureza turística.

Para tanto, é necessário ir ao encontro de soluções que se adequem à nova situação, designadamente no aspecto da regulamentação do HT, que deve considerar a sua condição de Instituição de Saúde Pública, compatibilizando-a com a especificidade da sua própria actividade. Esta medida deve ser tida como prioritária.

Com a necessária perseverança, recuperar a capacidade de acolhimento e de tratamento dos Utentes que recorriam ao HT, permitindo-lhe alcançar, progressivamente, os índices de frequência verificados no final do século passado, por forma a garantir a sua sustentabilidade financeira. Conforme antes mencionado, o reconhecido valor terapêutico da sua Água Mineral Natural, constitui o Bem essencial que fundamenta esta visão prospectiva.

Após esclarecidos os motivos por que persistem os achados periódicos de contaminação bacteriana, apesar dos investimentos vultosos já efectuados para a debelar, devem ser promovidas, se para tanto se revelar necessário, as acções que permitam obviar tão gravosa situação, designadamente, com recurso a outros furos de captação que venham a ser legalizados, conforme consta do contrato de concessão de exploração da água mineral natural, atribuído ao CHCR e formalizado em 7 de Fevereiro de 1995.

O tempo de programar a expansão do Termalismo nas Caldas da Rainha foi iniciado no final do século XIX. Devemos a Rodrigo Berquó o traçado de uma perspectiva de progresso para a Comunidade caldense, tendo como fulcro o desenvolvimento do Termalismo. O seu projecto ficou bem patente nas obras que edificou com base nos planos que estabeleceu e que não pôde concretizar porque a morte o surpreendeu em 18 de Março de 1896, no exercício do seu cargo de Administrador do Hospital Termal Rainha D. Leonor. A ligação íntima das Caldas da Rainha à sua instituição hospitalar continuou ao longo do século XX, com expressão na arquitectura urbana, na estrutura económica e na vida social da população caldense.

No final do século XX, com base no valioso património que nos foi legado por Rodrigo Berquó, foi dada continuidade ao seu projecto, de forma a proporcionar, numa perspectiva de inovação, de modernidade, uma adequada expressão das potencialidades do Termalismo nas Caldas da Rainha.

No articulado do mencionado contrato de concessão datado de Fevereiro de 1995, está contemplada a obrigação do concessionário “desenvolver iniciativas conducentes à expansão do termalismo nas Caldas da Rainha, promovendo, designadamente, a criação de uma clínica termal a explorar por terceiros, com base nos excedentes de água mineral produzida na área de concessão”. Por parte do CHCR foi cumprida esta obrigação, consubstanciada na elaboração do projecto denominado “Conjunto Turístico das Termas das Caldas da Rainha”, o qual foi elaborado no CHCR com a competente e insubstituível colaboração, logo com os pareceres favoráveis, da Direcção Geral do Turismo, do Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico, da Comissão de Coordenação Regional de Lisboa e Vale do Tejo. Foi também preciosa a participação da Direcção Geral das Instalações e Equipamentos da Saúde, da Região de Turismo do Oeste e de um grupo de trabalho criado institucionalmente, cujo contributo foi por demais valioso, tendo em vista a caracterização da proposta apresentada. O projecto, contendo todos os elementos necessários, incluindo o processo de concurso público, contendo o anúncio de abertura, o caderno de encargos e o respectivo programa, foi submetido à apreciação Tutelar, tendo merecido o despacho de Sua Ex.ª o Secretário de Estado da Saúde, Dr. José Arcos dos Reis, datado de 10.07.1996, no qual “concorda com a proposta de convencionar a expansão do termalismo”. Sublinhe-se que não estava então em causa a continuidade da integração do Hospital Termal Rainha D. Leonor, na esfera do SNS.

O projecto compreendia a adaptação dos Pavilhões do Parque a estabelecimento hoteleiro termal de quatro estrelas, bem como a respectiva exploração e ainda a adaptação do antigo Clube de Recreio a um centro de animação cultural e sua exploração. Ambos os imóveis foram reconhecidos pelas Entidades competentes como de valor arquitectónico e histórico-cultural.

No entanto, de forma inopinada, não esclarecida junto do CHCR, foi gorada a possibilidade de dar continuidade ao processo do mencionado concurso, tendo sido então nomeado, por despacho de Sua Ex.ª o Secretário de Estado da Saúde, Dr. Francisco Ramos, um grupo de trabalho com a finalidade de elaborar o programa funcional do HT, registando-se no mesmo despacho, que até à finalização da tarefa atribuída ao grupo, não seria dado seguimento a nenhum projecto ou iniciativa, tendo em vista a afectação das instalações existentes.

Depois de inviabilizado o prosseguimento deste processo, tanto a Direcção Geral de Turismo (DGT) como a Região de Turismo do Oeste (RTO), através dos seus legítimos representantes, manifestaram, formalmente, a sua preocupação pelo facto de, “do ponto de vista Turístico, se perder a oportunidade de concretização de um espaço termal Saúde/Turismo, privilegiado, por reunir, no panorama das Termas Portuguesas, um lugar de destaque” e, na expressão do Ex.mo Presidente da RTO, pelo que “significa de inovador, de criador de uma nova filosofia de hotelaria termal”.

Decorridos mais de dezasseis anos, a problemática do Termalismo nas Caldas da Rainha continua a aguardar uma resolução, de preferência a resolução que seja consentânea com a salvaguarda dos valores históricos que enobrecem a nossa comunidade fundada no século XV, com uma intenção de reforma no domínio assistencial e social, facto que deverá continuar a ser o orgulho do nosso Concelho, da Região e do próprio País.

O assunto é por demais relevante, considerando a complementaridade que é possível estabelecer entre a Cidade Termal e as restantes fontes de atracção turística da nossa Região. Lembremos a sua localização na zona central do País, próxima da área metropolitana de Lisboa, a proximidade das praias, a sua inserção numa zona de turismo privilegiada, que contempla Óbidos, Nazaré, Alcobaça, Batalha, incluindo o circuito turístico que conduz a Fátima. A sua acessibilidade favorece o acolhimento das pessoas provindas do Centro e Sul do País para quem a maioria das Estâncias Termais, situadas a Norte, é menos atraente. A captação do mercado internacional, constitui  uma evidência estratégica, que, com certeza, será tida como de obrigatória consideração.

No plano do Termalismo, o Hotel Termal corresponde ao objectivo de promover a qualificação e o aumento da frequência da Estância Termal, dada a sua condição de estabelecimento residencial que recebe hóspedes em permanência variável, realidade que se enquadra nas exigências impostas pela mobilidade, pelos padrões de procura e de utilização, em função das necessidades da população considerada.

O HT, numa perspectiva de competitividade em mercado aberto, através da inovação e da melhoria dos seus serviços, necessita do pleno uso dos espaços hospitalares. O imperativo categórico de compatibilizar a quantidade e a qualidade, impõe que o espaço físico disponível seja suficiente para acolher o número de Utentes que se ambiciona alcançar.

Nesta expectativa de aumento substancial da procura Termal e perante a exigência de uma gestão pública e autónoma do HT, a sustentabilidade do seu funcionamento ficará melhor assegurada se forem estabelecidas condições de relacionamento privilegiado, de complementaridade, no domínio do apoio clínico e terapêutico, entre o HT e o Hotel Termal, de modo a assegurar a todos os Utentes, as adequadas condições de acolhimento, que permitam oferecer em todas as estações do ano e de forma coincidente, o tempo dedicado à “cura Termal” e os tempos de Saúde/Lazer que, neste projecto, a frequência das Termas proporcionará. Existem actualmente condições físicas instaladas, que permitirão que os Utentes do Hotel usufruam da vantagem de acesso ao HT e ao Balneário Novo, sem necessidade de passar pelo espaço público.

Afigura-se assim menos difícil fundamentar a rentabilidade do investimento a realizar, por concessão, tanto na adaptação dos Pavilhões a estabelecimento hoteleiro termal e sua exploração, incluindo os espaços envolventes que lhe estão atribuídos, os quais serão destinados a Spa/Balneário moderno e Day/Spa, como na adaptação do Clube de Recreio a um centro de animação cultural e social e sua exploração.

Será com certeza dispensável referir que as acções a promover só poderão ter credibilidade se os principais decisores reatarem relações formais com as Instituições e as Entidades que têm por missão tutelar e/ou participar na orientação de projectos de índole assistencial, ambiental, geológica, patrimonial, termal e turística. Neste domínio, o rol é extenso.

No conjunto de circunstâncias que integram este projecto global de renovação, é sobretudo indispensável que as Entidades intervenientes cumpram um solene compromisso, tendo em vista a concretização de objectivos de interesse comum, os que representam, tão-somente, um benefício destinado àqueles que estão obrigadas a servir.

No entanto, nunca os compromissos reciprocamente assumidos, deverão conter, na sua formulação, quaisquer expressões que possam indiciar a transferência de propriedade de uma qualquer parcela do Património, natural ou edificado, afecto ao HT, para que seja salvaguardada a indispensável perenidade da sua coesão. Assim deverá acontecer também, no caso de eventuais relações formais a estabelecer entre o Estado e o Município das Caldas da Rainha, nas quais é indispensável consignar as regras que permitam proteger e valorizar os mútuos interesses que envolvem a Urbe e o seu Hospital Termal.

Considerando os antecedentes, o desígnio actual deverá ser o de pugnar para que tão relevante assunto evolua, finalmente, para a fase de resolução. O proveito que resulta para o progresso do Termalismo e da comunidade caldense, não é ilusório. Pensar o futuro num País em crise, poderá ser frustrante, mas só para quem não acreditar que os objectivos válidos são alcançáveis, com perseverança.

Caldas da Rainha, 15 de Novembro de 2012

Mário Gonçalves (Ex-Director do CHCR)

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