Sobre o “16 de Março de 1974”

0
586

Adelino de Matos Coelho
Major-general do Exército

O 48.º aniversário do “16 de março de 1974”, foi evocado numa cerimónia promovida pela Câmara de Caldas da Rainha, junto ao Monumento alusivo ao acontecimento, situado junto à Escola de Sargentos do Exército, herdeira da História e tradições militares do Regimento de Infantaria n.º 5 (RI 5). Oito dias depois, o tempo que Portugal vive em democracia ultrapassou os anos da ditadura e que o Movimento das Forças Armadas (MFA) derrubou. Nesse contexto e no âmbito do início das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Presidente da República iniciou um ciclo de condecorações aos militares que por diversas formas participaram no MFA que derrubou a ditadura e onde se incluem os oficiais que participaram no golpe falhado de 16 de março de 1974.
Em 2007, em Coimbra, num colóquio sobre o tema, que contou com as presenças de Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e Armando Marques Ramos, entre outros, tive o cuidado de afirmar: “No decurso destes anos, a maioria dos intervenientes do RI 5, no 16 de Março de 1974, tem mantido o silêncio, sobretudo, por ausência de desejo de protagonismo. No entanto, este não deve continuar, para que não se corra o risco de que mentiras muitas vezes repetidas se transformem em verdades que conduzam à percepção errada dos acontecimentos”.
O desconhecimento sobre os acontecimentos das Caldas exige uma pesquisa aturada com a recolha de dados credíveis e o contributo de todos os oficiais envolvidos, dado que a ponderação sobre o desempenho de cada um pode contribuir, decisivamente, para a análise histórica do 16 de Março!… Este debate é uma oportunidade para incentivar a investigação dos factos, desmontar protagonismos, colmatar lacunas e corrigir imprecisões que têm conduzido a graves equívocos.
A dois anos da comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, há que consolidar para a História de Portugal a realidade dos factos do “golpe falhado na madrugada de 16 de março de 1974”, nomeadamente a responsabilidade pelo comando da coluna que, saiu do RI 5, dado que o comandante da mesma, capitão Luis Piedade Faria, não a pode fazer, uma vez que faleceu há largos anos.
Sobre o envolvimento do Regimento das Caldas, não há dúvidas que resultou da vontade dos militares daquele Regimento, integrados no “Movimento dos Capitães”, em participar numa operação que julgávamos ter sido decidida pela Comissão Coordenadora. O espírito de corpo e o elevado grau de prontidão operacional em que a unidade se encontrava pode ajudar a compreender a facilidade com que o Regimento arrancou, mesmo num clima de intimidação que acontecia em diversas unidades do país, com detenções e transferências de oficiais do Movimento. À época, eu era tenente e um dos oficiais do RI 5 que participou no Movimento dos Capitães, integrou a coluna militar que naquela madrugada partiu para Lisboa, que foi preso e libertado em 25 de abril.
O “16 de Março” não é, em si próprio, um movimento homogéneo – quem o planeou e quem o executou foram oficiais de grupos distintos e com informação diferente, havendo, por isso, dois momentos decisivos: O primeiro, em Lisboa, quando um grupo de militares, no qual prevalecem oficiais ligados ao general Spínola, decide avançar com uma ação decidida à margem da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães; O segundo, nas Caldas, onde a maioria dos oficiais não tem qualquer ligação com o general e decidem concretizar a ação e avançar para Lisboa, não por a ordem vir desse grupo mas, exatamente o contrário, porque, na altura, pela informação de que dispunham, desconheciam que a ordem não vinha da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães;
O Capitão Luís Piedade Faria era o comandante da Companhia de Caçadores do RI 5 e relativamente à sua participação nos acontecimentos de “16 de Março de 1974” destaca-se: Mandou formar, armar e municiar a companhia, esclareceu o pessoal e deu a ordem de partida à coluna, sob seu comando; Deu instruções ao pessoal de transmissões para que, a respetiva viatura, circulasse junto da sua, que seguia na cauda da coluna, porque as restantes viaturas não dispunham de equipamentos rádio, sendo a ligação entre as mesmas feita “à vista”, de trás para a frente e vice-versa; Após o regresso da coluna ao quartel, deu ordem de apear das viaturas, ordenou as operações de segurança das armas e a reunião das munições e determinou a recolha do pessoal às casernas; No regresso da companhia e durante o cerco ao RI 5, em que foi dado o prazo de 15 minutos para a rendição dos sublevados, foi ao encontro do brigadeiro Serrano, para negociar a rendição, que foi depois decidida, também, com o comandante do Regimento, tenente-coronel Loureiro.
Quanto à participação do Capitão Armando Ramos, que era o único militar que integrava a coluna e que não era oficial do RI 5, os factos são os seguintes: Deslocou-se de Lisboa a Caldas para transmitir a informação de que devíamos sair e que outras unidades de diversos pontos do País”, a começar pelo CIOE, de Lamego, já o tinham feito. Posteriormente, veio a constatar-se que essas saídas não tinham ocorrido; Seguiu na coluna, com um oficial subalterno da Companhia de Caçadores, uma vez que era ele o contacto dos majores Monge e Casanova Ferreira do grupo que, em Lisboa, à revelia da Comissão Coordenadora do Movimento dos Capitães, tinha decidido a tentativa de revolta e que, a cerca de quatro quilómetros da portagem de Lisboa surgiram avisando que “ninguém tinha saído das outras unidades”; Nunca poderia ter tido a responsabilidade do comando da coluna, uma vez que ia nela o capitão Piedade Faria, que era o comandante da Companhia de Caçadores; mesmo que o capitão Faria não seguisse na coluna, o capitão Ramos, não poderia tê-la comandado, pois não era o mais antigo dos capitães que integravam a companhia.
Os factos constam no Relatório do Auto de Averiguações aos “Acontecimentos no RI 5 na madrugada de 15-16 de março de 1974”, em que na conclusão da respetiva Comissão de Inquérito se concluiu que o capitão Piedade Faria “saiu da unidade e fez sair consigo uma coluna armada e municiada constituída basicamente pela Companhia de Caçadores de que é o comandante, a cujos elementos deu ordens e instruções, seguindo a caminho de Lisboa”; Ao longo dos anos, este assunto foi completamente esclarecido, nomeadamente, em sessões evocativas do acontecimento realizadas na Câmara Municipal de Caldas, com as presenças de historiadores como os Prof. Doutores Fernando Rosas e Luís Nuno Rodrigues (caldense) e dos jornalistas Joaquim Vieira e Avelino Rodrigues, para além de Vasco Lourenço e de Otelo Saraiva de Carvalho que, tal como em 25 de Abril, também foi determinante para que o RI 5 saísse, em 16 de março de 1974.
Sobre este assunto, importa também referir as duas publicações, apoiadas pela Câmara de Caldas: Nas vésperas da democracia em Portugal – o Golpe das Caldas de 16 de Março de 1974 (2009), de Joana de Matos Tornada, e Nascida das Águas e o 16 de Março de 1974 (2018), banda desenhada de José Ruy. Ambas as edições referem o início do cerco ao RI 5, pelas forças da Região Militar de Tomar, cerca das 14h00, e salientam o momento importante que foi o diálogo sobre a “rendição dos revoltosos”, entre o Capitão Luís Piedade Faria e o Brigadeiro Castro Serrano, comandante das forças sitiantes, que mostram quem comandava a coluna e que também negociou a rendição. Este depoimento deve ser entendido como um contributo para a ação desse OCS em especial no que se refere à sua responsabilidade de garantir à comunidade e às gerações mais jovens o conhecimento dos factos reais da História.
Podemos dizer que o “16 de março de 1974”, pela forma como foi desencadeado, dificilmente poderia ter tido um desfecho diferente. Contudo, mostrou a fraqueza do regime, segundo Otelo, “inspirou-o para o novo plano” e, como disse Salgueiro Maia “tornou o 25 de Abril inevitável”. E, teve ainda outra consequência não menos importante: Spínola foi ao Carmo, mandatado pelo MFA e não levado pelos grupos dos que lhe eram mais próximos. E isso pode ter feito toda a diferença! ■

- publicidade -