O tempo que soa

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Dora Mendes
técnica de museu

Escrevia nestes dias sobre o tempo. O tempo marcado pelos ponteiros do relógio, que fora outrora regulado pelo correr gradual da sombra, da água, da areia ou dos ciclos lunares. Curiosamente, e ainda que o mote fosse a música, não referi o tempo que soa.
Não uso relógio, não gosto do tempo contado e sinto até um certo desejo por conseguir viver simplesmente o tempo das coisas. A história do tempo é, no entanto, uma narrativa que sempre me fascinou pela relação que estabelece entre a vida, a necessidade de controlo e o impulso que confere ao desenvolvimento da engenharia mecânica.
É na conceção do tempo que soa que se dá um dos primeiros actos mecânicos decisivos: o bater de um martelo num sino. O relógio mecânico, na sua origem monástica, traz consigo um novo paradigma na medição do tempo que deixa de ser apenas sinónimo dos ciclos repetidos do sol, e passa a ser medido pelo Staccato (escape) de uma máquina.
A motivação monástica que animou este desenvolvimento deixa entender que se anunciavam as horas canónicas. Era necessário assegurar os deveres para com Deus respeitando os momentos de oração prescritos pêlos cânones da igreja. Os primeiros relógios mecânicos não tinham mostradores nem ponteiros, pois a sua missão era apenas soar a hora, impulsionados por pesos que faziam tocar o sino após um determinado intervalo de tempo.
As torres das igrejas construídas para saudar a Deus e dar testemunho das aspirações celestiais do homem, tornaram-se torres de relógios, campanários, assumindo-se como uma utilidade pública que oferecia a todos um serviço que um normal cidadão não conseguiria, ele próprio, proporcionar. Não podendo a voz humana alcançar a todos, serão os sinos a assumir-se como forma de comunicação e união de povos. Anunciavam as horas, pediam auxílio, chamavam os homens às armas, festejavam a coroação de um rei ou uma vitória na guerra. O seu som era considerado terapêutico, na medida em que tocavam para afastar uma epidemia ou evitar uma tempestade. O orgulho de uma comunidade traduzia-se nos seus sinos, sendo as suas Igrejas, Mosteiros e a própria cidade, avaliadas pelo alcance e pela ressonância dos repiques dos seus sinos.
Engraçado como a musicalidade atenua aqui, no tempo sonante, o efeito de dependência face à medição do tempo, ampliando-se na sua função.
A história do tempo não se fica por aqui, trazendo consigo conhecimento, engenho e perícia que colocam os fabricantes de relógios como os primeiros a aplicar de forma consciente as teorias da mecânica e da física no fabrico de máquinas. A mãe das máquinas, o relógio.
Hoje não nos guiamos pelo toque dos sinos. O tempo que soa é, no presente, algo que mais do que unir povos, cria muitas vezes conflitos. Há demasiado ruído que nos ocupa e esgota, fazendo com que se perca espaço para simplesmente escutar sonoridades mais simples. Gosto, no entanto, de acreditar que com o contexto certo e a compreensão necessária, consigamos ser mais tolerantes. ■

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