Recordar o Rui Hipólito

0
608

notícias das CaldasSobre aquilo que foi a dimensão de cidadania do Rui se escreverá e bem, pela certa. Poder-se-á falar da entusiástica capacidade de entrega que havia nele, no Cine-Clube ou na Cooperativa Margem, sempre animado por um enraizado amor pela sua cidade.

Será decerto referido a atenção, inquieta, desassossegada, ao Mundo e ao seu devir (à Sociedade por vir) e aquela agudeza crítica de desmontar os costumes de que é feito, transposta em escárnios mordazes. E eu acho que sim. Mas prefiro antes contar uma amizade de quase meio-século, vinda lá de menino, da ginástica nos Bombeiros, dos futebóis na Mata, primeiro na modalidade de muda aos cinco/acaba aos dez, a seguir no campo da dita em rijos desafios Externato Ramalho Ortigão versus Escola Bordalo Pinheiro ou nas bancadas, aos domingos, a apoiar o Caldas, clube onde confluía o nosso fervor de adeptos convictos, Sportinguista (ele), Benfiquista (eu).
E os tempos do «Much», clube de fundo de quintal (disponibilizado pela benevolência cúmplice da família Xavier, que nos aturava como se filhos fossemos), dos bailes adolescentes em que as meninas traziam os «comes» e os rapazes os «bebes», dos «slows» disfrutados para aí com o dobro da duração (pelo menos) por via de providenciais solavancos, arreados assim como quem nem quer a coisa, no pobre do gira-discos, das cartadas entre a cortina de névoa espessa saída dos primeiros cigarros fumados furtivamente (apesar das provas do crime serem mais do que evidentes e quase palpáveis), ritual de passagem cumprido com o desejo pueril de sermos «homens» mesmo antes de vir a barba.
Rebeldes inconformados face ao arcaísmo conservador do Colégio, emergíamos criaturas do Verão, de mergulhos na Foz e das andaduras noctívagas por aí, à boleia ou tomando de empréstimo involuntário o «popó» de garagens paternas, com recolha colectiva de trocos para a gasolina ou, à míngua de fundos, com ela desavergonhadamente desviada para garantir o carburante etílico propulsor destas rapaziadas, jovens índios à solta em acampamentos no Algarve ou em incursões em Torremolinos, estúrdia e rambóias de, mais tarde, às tantas, fechar o Pote ou a Portugália e transitar, na rota lisboeta da cerveja, para a Alga, que pura e simplesmente não encerrava…
E vivermos de porta com porta, num patamar franco de «ò vizinha, dá-me lume?», em exercícios de alquimia pantagruélica (para desespero da Arlinda, que ficava com a cozinha virada de pantanas), mais solos de harmónio para o João, miúdo de colo, pedir bis (o melhor público que eu poderia ter. Perdoai-lhe Senhor, que ele era pequenino e não sabia o que dizia…), da Mafalda de berço e baixar a música não fosse ela acordar…
E a aventura da Rádio, pirata como convinha, com o «Círculo da Noite», da meia-noite às duas, nós os dois e o Zé Fragoso, não é para a gente se gabar, passando o melhor que a música da década de 80 tinha para dar.
E por aí adiante…
A doença, de cabelos de bolor negro e dentes verdes, roubou-lhe a força, mas nunca a lucidez!
Somos feitos da matéria com que se fazem os sonhos (roubado ao Shakespeare) e, de súbito, desaparecemos desfeitos em fumo no ar.
Enquanto a tristeza se eleva em espiral, penso em ti, ao som de «At the Hop» dos Sha-Na-Na ou «My Generation» dos The Who em Woodstock, de que tanto gostavas. Falta-me essa risada escarninha a luzir, maliciosa, nos teus olhos…
À tua, meu!

- publicidade -

José Carlos Faria

Em memória do Rui Hipólito

Quando éramos professores na Escola Secundária Raul Proença, conheci o Rui, mantendo-se o convívio, mais espaçado ou mais próximo, ao longo destes anos.
Pessoa discreta, que nunca vi alcandorar-se a qualquer vanglória costumeira na nossa praça.
Tinha o sentido da amizade, verdadeira,  sem derrames sentimentais, mas que o coração sente.
Fácil no trato, aberto aos outros mas contido.
Arguto relativamente às matérias sobre que discreteávamos, era por vezes firme na defesa dos seus pontos de vista, mas sem molestar ninguém.
Simulava em situações sociais distracção relativamente ao contexto, ocupando-se com outras tarefas, que também lhe interessavam, mas tinha a capacidade de estar atento ao que se dizia, tomando posição quando o entendia para concordar ou corrigir o que alguém dissera.
A sua paixão pelo cinema traduziu-se nomeadamente na sua participação na Direcção do Cineclube Caldense, ora extinto, que trazia às Caldas fitas memoráveis, nunca vistas antes aqui, do interesse de uma vasta massa com apetência cinematográfica. Ficou aqui uma marca da sua intervenção cultural no espaço urbano, apenas porque gostava de cinema e queria partilhar esse gosto com os outros.
Já em memória desses tempos, vi-o por vezes entusiasmado até ao riso recordar situações hilariantes narradas nesses filmes. Pois era dotado de um espírito de humor, que usava para verberar aquilo com que discordava ou que achava desconchavado.
Agora que foi obrigado a partir do nosso convívio, pois o monstro assassino com que lutou levou a melhor, soube manter a coragem na luta, a esperança na vitória, nunca refluindo à solidão da sua casa e nunca abdicando do seu convívio social, embora pouco a pouco mais escasso.
Agradeço-lhe o termo-nos cruzado nesta vida, onde partilhámos sempre pouco! – momentos de presença e de comunicação.
Creio que agora Deus o tem consigo, o seu amor sem limites acolheu-o na sua morada, ele que tinha um coração verdadeiro e bom.
À família, estou solidário com a sua tristeza sem fim e peço-lhe muita coragem para enfrentar os dias difíceis que está a viver.
Vasco Tomás

- publicidade -