Primeiro como tragédia, depois como farsa

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 DattaSaikiran Datta
investigador

As aldeias tendem a perder a sua identidade à medida que a cidade, a indústria e as urbanizações rastejam perto da sua linha de fronteira. A povoação periférica é a primeira a sentir a tendência migratória e o êxodo agrícola. Tomamos o caso do lugar do Bairro na periferia de Caldas da Rainha.
Recuando no tempo, a chegada de mineiros que não dependiam da agricultura serviu de exemplo para os camponeses locais procurarem novos meios de sustento nas explorações de gesso na imediação. Dados revelam que o respetivo concelho perdeu 86% da população rural empregada no setor primário entre 1960 e 2011, de 3.400 para 470 indivíduos. Abandonando as práticas agrícolas, a população rural tornou-se economicamente dependente da cidade, perdendo o camponês a sua autonomia a favor de subordinação laboral. As fábricas sediadas na cidade empregaram novos operários distintos dos trabalhadores rurais. Os assalariados deslocavam-se diariamente a partir do lugar onde mantinham a sua residência. Novas profissões como o sapateiro, o padeiro e as sopeiras procuraram trabalho assalariado no contexto urbano. Ganhar um rendimento superior ao do camponês servia de atração, pois era visto como uma forma de fugir à realidade em que este lutava pela sua sobrevivência. Os depoimentos recolhidos indicam que na década de 1960 o seu rendimento diário seria de 25$00, enquanto que na cidade um vendedor ambulante, como o tremoceiro, ganharia o dobro e um relojeiro o quádruplo desse valor. O relógio regulava o tempo fabril, deixando o trabalho de ser regulado pelo sol. O sapateiro migrado ganhava 40$00 por dia e o padeiro 33$00 e uma fatia de pão. A situação económica do país em termos de remuneração de agricultores e de mineiros era estagnante. Relatos corroboram que um cabouqueiro ganhava 18$00 diários nas galerias de gesso. Já na década de 1970, quando o seu salário aumentara para 50$00, o jornaleiro da Quinta do Negrelho ainda lutava para receber um frugal 40$00.
O desenvolvimento da cidade deveu-se à mão-de-obra disponível no meio rural, contribuindo para a desruralização da sociedade portuguesa. O êxodo desencadeou contrastes e desequilíbrios cujas consequências ainda hoje se observam no mundo rural. Acentuando a saída da agricultura a favor do trabalho assalariado, muitos dos habitantes citadinos são provenientes das aldeias em redor, pertencendo à geração de trabalhadores que se desligaram das suas bases rurais.
As cidades são mega-teatros que transformam a realidade sombria numa festa. Encenar as tradições rurais neste contexto urbano seria uma farsa; a teatralização de um passado rejeitado em nome do progresso; uma paródia em memória dos verdadeiros heróis que foram desenraizados e absorvidos no vórtex do trágico. Em contraste a esta recriação cosmética, o camponês da actualidade continua a persistir na lavoura, sobrevivendo como guardião da sua função e da sua tradição.

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