Perplexidade

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Há assuntos sobre os quais se torna mais difícil reflectir. Seja pela sua complexidade, exigência técnico-cientifica, ou disponibilidade de toda a informação. A justiça é certamente um destes assuntos. Com um vasto rol de decisões incompreensíveis para o comum dos mortais, esta área tão importante da vida colectiva não tem feito muito, antes pelo contrário, para se prestigiar. A própria vida democrática ressente-se, com um generalizado clima de cepticismo, que se vai apoderando dos cidadãos como um manto diáfano que vai, pouco a pouco, tapando a confiança nas instituições tão necessária em qualquer sociedade.
Mesmo tratando-se de um assunto complexo não deve ficar fora do perímetro do escrutínio público, sobretudo pela importância directa que tem nas vidas de todos nós. Como sociedade democrática temos mesmo a obrigação de promover esse debate com o objectivo da melhoria permanente da sociedade onde vivemos ou onde desejamos viver.
A imprensa local noticiou há poucos dias uma decisão judicial, algo bizarra diga-se desde já, que apesar de condenar uma junta de freguesia específica (a da Foz do Arelho) acaba por ter impacto na vida de todo o município. Do que veio a público, ficámos a saber que a Junta terá de pagar uma indeminização milionária a um privado sobre uma suposta utilização e cedência de exploração indevida duns terrenos desse privado. Tudo fica mais confuso quando sabemos que o que legitima a pretensão do privado é um documento datado de 1580, do século XVI portanto… que institui o direito de morgadio (?!!?).
A perplexidade não podia ser maior. Como é que um título de propriedade com mais de 400 anos (?!?) ainda encontra legitimidade no actual ordenamento jurídico? Sabemos que a instituição judiciária é conservadora por natureza, mas, sinceramente, aos olhos do comum cidadão do século XXI, isto é ridículo. E não é só a distância temporal que causa estranheza: nestes 435 anos mudaram dinastias, o país perdeu e recuperou a independência, a monarquia passou de absoluta a parlamentar e, finalmente, a república há mais de um século. Uma decisão judicial desta natureza, num regime democrático, tem de ser completamente transparente para ser credível. Os tribunais não são instituições omniscientes e infalíveis ou isentas do erro judiciário, como a própria expressão prevê.
Como é que um tribunal averigua a veracidade de um documento com 435 anos? Como é que um documento de 1580 institui um morgadio, figura que só entrou no ordenamento jurídico em 1603 com as Ordenações Filipinas? Como é que o morgadio ainda faz letra de lei após abolição em 1883 por D. Luís I, com excepção da Casa de Bragança que durou até 1910? São demasiadas perplexidades para ser uma decisão judicial pacífica. Desta história toda só sai bem o Tribunal das Caldas que rejeitou a primeira tentativa de acção judicial como improcedente.
Que alguns ainda se julguem os senhores feudais seria problema apenas deles, não fosse um tribunal vir legitimar essa esdrúxula pretensão. Que o poder político local ache legitimidade na indeminização e exagero no montante também não admira, é apenas uma Câmara de direita a governar para os seus, como acontece em tantas outras opções políticas. O problema é que o ónus recai sobre todos os caldenses, com a Junta penhorada e a Câmara garantir a prestação de serviços à população, como não podia deixar de ser, somos todos a pagar.
Nas redes sociais a indignação manifestou-se, pelo politicamente correcto, contra os escritos que apareceram nas paredes da Quinta da Foz. Muita sorte temos todos nós, uns mais do que outros, enquanto a indignação popular se manifestar apenas em inofensivos grafitis.

Lino Romão
linoromao2.0@gmail.com

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