Cristina Soares
Consultora de Comunicação de Ciência
Há uma tirinha de Natal da Mafalda onde ela e os amigos cantam “Noite de paz, noite de amor”. A dada altura ela interrompe-os e questiona-se “Antes de continuar, gostava de saber se compreendemos a letra”.
Faz parte do nosso instinto de sobrevivência não parar com as nossas vidas, com as nossas pequenas rotinas, mesmo se o mundo lá fora estiver a desmoronar. Comprar os presentes, fazer as decorações de Natal, ver quantos quilos deve ter o peru ou quantas postas de bacalhau temos de comprar, para que chegue para todos à mesa. Reservar o Bolo-rei, um rainha também, que o Zé Manel não gosta de frutas cristalizadas, não te esqueças do azeite, que está pela hora da morte, e das broas, mas só para ter na mesa que ninguém come, e os miúdos agora gostam de outras coisas. Cumpre-se a rotina, sempre pelos mesmos contornos, afinal a vida, muitas vezes, só nos faz sentido quando contornamos os seus limites a marcador. E nessa rotina vêm as frases cheias de genuínas boas intenções, sobre o tal tempo de paz e amor. Mas as intenções, são como o nome indica, apenas isso. E no dia vinte e seis já se trabalha, e o tempo de paz e amor, que não tem vínculo laboral nem número de contribuinte, terá de esperar pelo próximo ano. Outra vez.
A estação do Oriente, em Lisboa, está lotada com pessoas sem-abrigo, assim como a zona ribeirinha do Cais do Sodré. Alguns deles são casais e famílias inteiras. Há centenas de idosos abandonados nos hospitais por famílias que não têm condições financeiras para cuidarem deles nem para lhes pagar um lar. Há milhares de jovens a desistirem do sonho por não terem como pagar um mísero quarto.
Fora das nossas fronteiras (as geográficas, não as emocionais, que essas separam-nos do mundo logo a um palmo do olhos), a guerra na Ucrânia continua. Tal como na Faixa de Gaza. No Mediterrâneo, todos os dias morrem homens e mulheres, que tentam, no seu desespero, uma vida melhor e o direito a um futuro para os seus filhos.
Não, não quero que esta crónica seja uma prédica sobre termos de carregar as culpas do mundo nos nossos ombros. Mas, pergunto-me se na nossa azáfama natalícia, alguma vez paramos por um instante e nos interrogamos, tal como a Mafalda, se sabemos realmente o significado da tal paz e do tal amor, que não aquele que oferecemos dentro de papel de embrulho.
Um instante. Ofereçamo-nos um mero instante, longe do barulho das luzes, para pararmos e olharmos, com olhos de ver, para os outros Natais, que não apenas os nossos.
Feliz Natal. ■

































