(Estrada de Macadame) CCXIII – «Os meus desconhecidos primos de Vila Nova»

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O lugar onde eu nasci já não existe. Custa escrever uma frase como esta. Não é fácil. Esta frase que eu utilizei para abrir um dos onze contos do meu livro «Os guarda-redes morrem ao domingo» (Padrões Culturais Editora) e projecta uma homenagem discreta mas sentida ao percurso do magnífico futebolista Mário Jorge (Ponta Delgada, 1961) acabou inteirinha por me vir, anos depois, bater à porta.

Dito de outra maneira: o quarto onde eu nasci em Santa Catarina no tempo da «estrada de macadame» já não existe. É uma ruína, um monte de entulho: telhas, barrotes, pedras, tijolos, tábuas de sobrado, memórias. Ainda por cima descobrir tudo aquilo foi um choque para mim porque ninguém me avisou: fui ao Posto Médico buscar umas análises do meu pai e íamos os dois, com a minha filha Marta, a pensar já nos petiscos da Taberna do Manelvina nas Cruzes quando vi as ruínas da casa do meu avô José Almeida Penas e da minha avó «Flauta». Eu nasci em 13-2-1951 naquela casa, naquele quarto que hoje é um monte de entulho.
Talvez por isso, talvez por estar tão ligado àquela casa, senti o profundo golpe de destruição mas, ao mesmo tempo, lembrei-me desse meu avô carpinteiro que, quando vinhas daqueles lados (Malasia, Vale Serrão, Boisias, Ribeira dos Amiais, Ramalhosa) me falava sempre dos primos de Vila Nova. Ora Vila Nova pertence a Alvorninha mas fica do outro lado da freguesia, mais perto do lado dos Vidais ou de S. Gregório. Ora um oficial carpinteiro que acaba uma obra, um emadeiramento de uma casa, portas e janelas, tudo feito à mão em base de artesanato, está cansado e só pensa em voltar para a sua casa em Santa Catarina. E Vila Nova fica do outro lado.
Pouco ou quase nada sei dos meus primos de Vila Nova. Presumo que tenham o nome comum (Penas) aos primos da Mata de Porto Mouro. Nas Caldas da Rainha, entre Abril e Julho de 1972, tive como instrutor militar da minha recruta no Curso de Sargentos Milicianos um primo Penas que deve ter agora 61 anos ou perto disso. Ele já era um veterano no quartel do RI 5, estava para sair da tropa e foi impecável para com este pobre primo atónito, confundido e temeroso. Naquele tempo a comunicação entre as pessoas, mesmo entre os primos, era mais difícil: não havia tantos telefones nem automóveis e as estradas eram todas de macadame. Não admira que o meu avô José Almeida Penas lamentasse estar tanto tempo sem saber dos primos de Vila Nova. O meu avô nasceu em 1906 e morreu em 1979 mas ainda conheceu a minha filha mais velha Ana Maria (n. 1978, Lisboa). Talvez o meu neto Thomas Francisco Sutherland (n. 2006, Londres) venha a conhecer os primos de Vila Nova que também são seus embora viva em Blackhetah Park – Londres.
A vida é uma universidade aberta onde não é preciso pagar propinas. Ensina-nos muito, basta saber olhar, descobrir e perceber. Os mortos empurram os vivos. A única resposta possível à morte é a vida. As nossas memórias e as nossas recordações ligam de modo discreto os mortos aos vivos. O meu neto e a minha filha prolongam em Londres a vida do meu avô e da minha mãe que nasceram e morreram em Santa Catarina. Os meus primos de Vila Nova são uma ponta invisível mas presente dessa interminável cadeia de afectos. Estou com eles, com os meus primos de Vila Nova mesmo sem os conhecer mas um dia, quem sabe, de modo inesperado, tímido e receoso, como quem pede desculpa, sou capaz de pegar no meu automóvel e viajar até Vila Nova à procura dos meus primos. À espera de (quem sabe?) chegar a Lisboa feliz, de lágrimas nos olhos e reconciliado com o meu destino.

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