O regresso de Bordalo I

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bordalo«Todo ele remexe, todo ele é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa desenham e imitam». Assim o define Raul Brandão, que o elege como caricaturista único, sem maldade nem escárnio desesperado: «o lápis dos outros amolga, envenena, destrói, faz gritar ou faz cismar: é talhado na pena vermelha do Diabo e molhado em fel. No lápis de Rafael Bordalo Pinheiro mistura-se o riso com a emoção. Até mesmo quando ridiculariza, este artista de génio faz amigos. Rafael Bordalo Pinheiro é uma força – o Riso».
No “Praça da Fruta”, Rafael é apresentado por Francisco Gomes de Avelar a um dos narradores, que o define como «uma figura esfusiante de energia e de simpatia. De olhos negros, irrequietos, um pouco trocistas mesmo quando a feição assume ar de gravidade, nariz grosso, cabelo crespo, porte elegante apesar de alguma tendência para a obesidade». O narrador contemporâneo lê num diário o registo da conversa, e sabe-lhe a pouco: «Parece-me inacabada. Procuro em vão a sua continuidade, noutros manuscritos, em notas dispersas, papéis avulsos. Nada. Falta-me a chave do enigma. A resposta a uma pergunta que tem mais de cem anos. Onde foi ele buscar os bichos de cores incandescentes que povoam a cidade? Será que os trouxe? Ou já por cá andavam quando chegou?».
Morreu em 1905, depois de conquistar a imortalidade, o que significa que ficou por cá, pelos recantos da vila que projectou no imenso mundo ávido do seu talento, e eis que surge um segundo enigma: por onde tem andado?
Por mim, atrevo-me a sugerir que se refugiou na Loja 107, com a cumplicidade da Isabel Castanheira. Entrávamos naquele espaço, e lá estava ele, por todo o lado: nos gatos com nomes de artistas, mansos e discretos como a suave Pili; nos bustos de bigode farto e monóculo atento; nas gravuras suspensas no tempo e nas paredes; no traço genial que nos faz soltar um riso de emoções contraditórias, algures entre a raiva, a compaixão e a ternura; na resistência cúmplice, às vezes inútil, contra a vulgaridade, o que ditou a exaltada exclamação de Fialho de Almeida: “Tanta iniciativa, talento e trabalho, para ali, em estilhaços, no meio da indiferença …”.
Às vezes saíam à rua os dois, ele e a Isabel, em breves passeios pelas ruas da cidade e pelas páginas da Gazeta das Caldas.
Mudam-se os tempos e com eles velhos hábitos com que fomos felizes, como o de passear pelas ruas da cidade, uma bica naquela esplanada, dois dedos de conversa naquela esquina, uma espreitadela naquela montra.
A indiferença, sempre a indiferença, fez-nos ceder ao despotismo do consumo uniforme, sem espaço nem rasgo para a audácia e para a alternativa. A qualidade e a ousadia criativa silenciaram-se nos escaparates ruidosos das grandes superfícies comerciais, alimentados pelo ruído ensurdecedor que faz e vende “artistas” em “horário nobre”.
O refúgio de Rafael não resistiu ao cerco. Desalojado, veio para a rua. Ou talvez não. Por mim, atrevo-me a sugerir que se refugiou com a Isabel, sua eterna cúmplice. Lá em casa vi-o por todos os lados: os mesmos bustos, os mesmos quadros, os mesmos vestígios, outra gata, mas tão discreta como a suave Pili.
Entretanto, a cidade começa a reconhecer-se no seu mais universal filho adoptivo, e eis que em boa hora surge uma rota bordaliana que se saúda, e que tem início logo ali à saída da estação de caminho de ferro: azulejos, rãs e água. Água e barro, o código genético da cidade, que redescobrimos sempre que recuamos um pouco na sua/nossa história.
Mas lá no novo refúgio, nunca os cúmplices deixaram de conspirar, e ei-los de mão dada, numa obra que vasculha cada um dos recantos da nossa cidade, que nos convoca e surpreende em cada página. Chama-se “As Caldas de Bordalo”.
Maravilhados, descobrimos Bordalo e reconhecemo-nos na cidade que se desvenda naqueles becos, ruas, praças e jardins, numa viagem de 89 passos e 10 pausas, com pormenores que talvez já tenhamos visto e esquecido, nas nossas ruas “quase invisíveis de tão habituais” como dizia Jorge Luís Borges.
A obra, da autoria de Isabel Castanheira, com grafismo de Miguel Macedo, será apresentada no CCC, no dia 6 de Dezembro.

Carlos Querido

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