Estrada de Macadame – CCVIII – «O pão que o Diabo amassou não presta»

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Quando eu era criança, no tempo da «Estrada de macadame», a vida era complicada. Tal como todos os miúdos do meu tempo, eu que nasci em 1951, fui criado com um pequeno-almoço de pão de milho. O pão de trigo (chamado pão alvo por ser branco) só se comia em dia de festa. O que se comia de manhã em 99 por cento das casas de Santa Catarina era pão de milho partido em bocadinhos numa tigela e, por cima, para amolecer, metade de uma cafeteira do café mais barato, comprado na loja de «Menina» Judite por troca com uma dúzia de ovos. O café tinha duas funções: aquecia a alma dos cachopos e ajudava a fazer com que o pão ficasse mais macio. Naquele tempo chovia muito e durante muito tempo. Os Invernos eram longo e duros, o nosso Rio da Pedra alagava as margens e a água ficava toda barrenta.
O motivo à vista destas memórias do pão é o livro «Esta vida são dois dias» do Dr. Celestino Gomes, médico e investigador de temas de arte e de história de arte. Além do mais Celestino Gomes foi colaborador do «Diário Popular» e o livro recolhe, numa edição da Livraria Popular Editora de Francisco Franco, um vasto conjunto de crónicas de jornal. O meu jornal desde 1978 até ao fim mas que já era meu jornal em 1957 no Montijo quando o meu pai o trazia ao fim da tarde do Palácio da Justiça em construção.
Agora que a crise está aí para ficar, o pão vai voltar à ordem do dia. O desemprego, as fábricas deslocalizadas para países onde a mão-de-obra é mais barata e menos exigente, as dificuldades em as pessoas cumprirem os seus «serviços de dívida», tudo me faz pensar no pão. Não o pão da Bíblia mas o pão nosso de todos os dias. Sobre esse pão escreveu Celestino Gomes, médico e colaborador do «Diário Popular»:
«O pão quando é bom deve ser comido duro. Pão, vinho e amigo, o mais antigo, diz o povo que entende tudo, e bem. Ou ainda grelhado, em torradas onde a caramelização torna o amido mais digestivo, facilitando a acção dos fermentos salivares, bom principalmente para as pessoas de estômago delicado, dispépticas, com fáceis azias e cujas virtudes vão mesmo, dizem alguns, a conservar a frescura das peles femininas até as mais provectas idades. Ou finalmente para quem tiver posses que avondem, com manteiga adicionada segundo a receita culinária da cantiga:
Torradinhas com manteiga
Por cima café, limão…»
E Celestino Gomes conclui, a partir de um texto de Augusto d´Esaguy: «O pão fabricado em duas horas, à custa de 3 a 3 e meio por cento de fermentos artificiais, ou o pão feito com massa 50 por cento morta, azeda, preparada na tarde anterior à sua cozedura e fabrico, à qual se junta massa viva, produzida nas duas horas de trabalho matutino, entre as cinco e as sete, é um pão prejudicial à alimentação e nocivo à saúde pública».
Pela parte que me toca, embora não tenha perto de mim nenhuma Ana do Vedor saída das páginas de um livro de Júlio Dinis, já tratei de comprar uma torradeira e já comecei a ter melhores digestões. Afinal «Esta vida são dois dias» como já dizia o meu querido Celestino Gomes nas páginas do meu querido Diário Popular.
Nem mais nem menos, o jornal de aqui ao pé da porta, na Rua Luz Soriano – «O jornal da tarde de maior tiragem e expansão» – tal como está no cabeçalho do periódico reproduzido na capa do livro.
Como dizia Carlos Pinhão que me levou para lá:  «Ai que saudades, ai, ai.»

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