O gato preto da minha rua

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gatoNa minha rua vive um gato. É um gato grande, preto, de pelo ondulado, olhos verdes cor de esmeralda, rabo alçado, dentes afiados e língua vermelha. O seu dorso eriçado, à imagem de movimentos de um mar encapelado, indica-nos o seu estado de espírito: está assanhado. Mas diga-se em abono da verdade, tal linguagem corporal é só fogo-de-vista… este gato não faz mal a ninguém. Se nós deixarmos, até se roça por nós em busca de mimos e festinhas…
Chegou o momento de vos apresentar tão especial animal que habita na minha rua: ele é nem mais nem menos do que o Gato Assanhado da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro que, desde os finais do ano passado, na companhia de mais umas quantas respeitáveis figuras bordalianas, povoa as ruas da nossa cidade.
Reconhecendo todo o entusiamo e cuidado postos na execução destas obras tão especiais, que dispersas pela cidade lhe conferem uma nota de renascimento artístico ao mesmo tempo que embelezam as ruas, uma dúvida se me coloca. Aquele gato é mesmo um gato de cerâmica?
Não sei bem … estou verdadeiramente baralhada! As minhas dúvidas consolidam-se ao folhear os diversos jornais da autoria do grande repórter Rafael.
Então não é que encontro vários artigos em que o autor se intromete nas suas próprias reportagens, convertido em gato?
Será que o gato da minha rua é o Bordalo transfigurado numa noite luarenta de Janeiro? Tal não me custa a crer dado o desembaraço com que ele se passeia pelos telhados nas páginas d’ «O António Maria», se bem que um certo peso a mais o impeça de se aventurar muito mais longe.
Rafael Bordalo Pinheiro gosta de se metamorfosear em gato. Basta ver o ar satisfeito com que se apresenta em cima da mesa – até dispensa o monóculo que pende, abandonado, ao pescoço. Mas a cauda, erguida como um troféu conquistado com honra, alvoraçada ao vento… demonstra bem o orgulho e satisfação na sua momentânea situação felina.
Se dúvidas houvesse quanto à persistência e ao gosto que manifesta em ver o mundo da perspectiva do olhar intenso e misterioso do gato, bastaria para desfazê-las a declaração pública de Rafael confessando que o gato que no dia anterior apareceu no camarote do S. Carlos era afinal, ele. Acreditamos? Claro que sim, se é o próprio autor que o confessa … Acreditamos pois, quanto mais não seja, por causa das bruxas!
Na minha rua há um gato preto. Grande, belo, lustroso, imponente…
Será que um dia destes, em vez de o encontrarmos, damos de caras com …. Até tenho medo de dizer, porque eu não acredito em bruxas, mas, que as há, há!
Nota final: Rafael Bordalo Pinheiro faleceu a 23 de Janeiro de 1905. Relembramos a data.

Isabel Castanheira

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