
Soou solitária a badalada da meia hora no relógio de pé alto. Dona Elvira, sentada na costumada senhorinha forrada a shintze florido, acariciou o pelo da gata enroscada no seu colo, levantou os olhos e disse:
– Rafael, olha as horas; não podes chegar tarde. Estarão todos à tua espera e não é bonito fazê-los esperar.
Maria Helena acerca-se do pai, endireita uma invisível ruga no colarinho bem engomado, passa as mãos pelos ombros do casaco paterno a limpar um hipotético pozinho de gesso e sorri como que a dizer: – Tudo bem, agora já pode ir…
Bordalo Pinheiro acena um ligeiro adeus e sai porta fora com destino à praça.
Lá chegado, junta-se aos seus amigos e conhecidos frente ao modesto edifício onde a partir de então está instalada a sede da Associação Comercial e Industrial. A Filarmónica, aprumada e afinada, executa marchas a assinalar a data.
Hoje é um dia importante: Rafael Bordalo Pinheiro vai tomar posse do seu lugar de Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação.

Deu-se início aos rituais próprios da cerimónia e por último Bordalo Pinheiro tira do bolso interior do casaco, um conjunto de folhas manuscritas, endireita-as passando-lhes a mão por cima, projecta o peito para fora e começa a ler:
“Meus Senhores:
Não é artista da palavra quem quer. Desejava eu sê-lo neste momento, e infelizmente não posso e, então, permitam-me os meus ilustres consócios que lhes leia o meu agradecimento sem atavios de frases que não sei empregar, nem falando, nem escrevendo.
Falham-me, meus senhores, todos os dotes oratórios e não desejo dar-lhes uma coisa postiça no momento em que tenho a honra de assumir o alto cargo de Presidente desta Assembleia, nomeação que só devo à vossa boa amizade e que, para mim é uma prova mais da muita simpatia com que tenho sido distinguido nas Caldas da Rainha desde que vim aqui assentar os meus arraias de trabalho. É grande, enorme, o meu embaraço para expressar-vos os sentimentos da minha enternecida gratidão por mais esta amabilidade; seria preciso empregar belas frases cheias de eloquência que pudessem satisfazer-me e agradar à respeitável Assembleia que me escuta; não o sei fazer, não o sei dizer. Sinto uma grande alegria ao ver-me colocado pela vossa generosidade em tão elevado cargo e uma enorme tristeza por não poder corresponder a tão alto favor. Como tive ocasião de expor aos dignos cavalheiros que me fizeram a honra de convidar-me a exercer este cargo, a minha insuficiência, uma vida tão diversamente orientada, o nenhum conhecimento destes assuntos e a minha absoluta negação para a oratória, assim para exercer dignamente este lugar uma manifesta incompetência. Insistiram amavelmente, aceitei, por não querer que pensassem uma escusa e me julgassem desagradecido. Agora, meus senhores, aqui têm a prova, a cruel prova. Confio inteiramente nos conhecimentos dos meus dignos secretários para os quais apelo desde já, declarando-lhes que, sem o seu auxílio, a minha missão será dificílima.
Para abrir esta sessão seria necessário a Eloquência, e a eloquência é uma arte. Sinto o muito que se poderia dizer sobre a enorme importância do Comércio e Indústria, e sobre o que a junção destas duas forças pode produzir de grande e de útil, e não o posso fazer em frases interessantes, o que é muito triste.
Era deste lugar que deveria comemorar a bela obra que hoje se inaugura nesta casa, que tantos e tão grandes benefícios pode e deve trazer a esta deliciosa terra, e falta-me a fluência e a elegância para tratar de tão vasto e momentoso assunto.
Seria necessária uma brilhante sinfonia de abertura sobre os motivos do Comércio e Indústria reunidos para engrandecimento da Sua terra, pensando seriamente na prosperidade das Caldas, mesmo das coisas mínimas, tudo para que possa ser de utilidade para esta deliciosa Vila, sem preocupações de partidos ou pessoas, cuidando do desenvolvimento deste canto do País, sem dúvida o mais bem dotado de todas as terras portuguesas.
Nomeando-me V. Exas., quiseram ter em vez de brilhante sintonia de deliciosos acordes de violino um triste e monótono acompanhamento de rabecão grande. É a primeira vez, julgo eu, desde que resido nas Caldas que vejo reunidos os principais elementos de trabalho, as primeiras casas desta Vila, no sentido de acabar com os águas mornas, deixando-as unicamente aos banhos, onde são tão necessárias.
O principal elemento das Caldas é sem dúvida o Hospital Real, que vai entrar em um período de remodelação, tendo à testa desses trabalhos um ilustre clínico, o Dr. Cymbron, cavalheiro cheio de talento, boa vontade, e que necessariamente irá com a sua muita ilustração e trabalho iniciar e activar tudo o que possa dar lustre e desenvolvimento a estabelecimento balnear, e tudo que possa dar vantagens ao Hospital as dará também a esta terra.
Devemos unir-nos todos para coadjuvar quanto possível nos melhoramentos que vai empreender facilitando-lhe tudo que seja possível para aumentar o desenvolvimento do Hospital, que é também o desta formosa terra.
Parece, meus senhores, que esta Associação deveria tomar sobre si a iniciativa não só dos melhoramentos, mas de todas as festas que possam atrair forasteiros a esta Vila, de acordo com a digna Câmara Municipal, todas as Associações, Agremiações e Sociedades de sport. Começando desde já a por organizar uma bela festa de abertura do Hospital em 15 de Maio que possa atrair para aqui as atenções de todo o país. Seria este o seu primeiro passo, a sua verdadeira sessão solene.
Todos podem concorrer com uma pequena parcela do seu trabalho, temos dois meses que bem aproveitados, estou seguro que darão o resultado que todos desejamos.
E, assim, meus senhores, eu que não lhes posso dar brilhantes discursos, primores oratórios, podia dar-lhes trabalho e muita sinceridade, cumprindo assim o meu lugar.
Concluindo espero que desta Associação venham a sair os melhores e mais proveitosos frutos, pedindo-lhes que me acompanhem num caloroso viva ao Comércio e à Indústria desta lindíssima e deliciosa Vila das Caldas da Rainha, para que façam o grande brilho e engrandecimento desta Terra.”
Efusivamente aplaudido por todos os presentes, Rafael Bordalo agradeceu comovido a prova de confiança e amizade. Logo depois, quando a todos foi servido um cálice de Porto, ergueu o seu e disse bem alto: “Vivam as Caldas!”. Continuava a ouvir-se a música executada pela Filarmónica.
Mais tarde, Bordalo Pinheiro, enquanto caminhava em direcção a casa, situada no parque da Fábrica das Faianças, ia recordando tudo o que tinha dito enquanto conjecturava na dificuldade da concretização dos seus propósitos. Tão grandes eram essas dificuldades que, até hoje, mudados os tempos e as circunstâncias, independentemente de todos os esforços e vontades, mantêm-se uns quantos ainda irresolúveis.
Isabel Castanheira
Repórter de serviço à tomada de posse, no ano de 1903, constatando a antiguidade dos problemas caldenses.
































