Saikiran Datta
investigador
A escassez e a poluição da água representam hoje uma crise. Um bem que tanto pode ser uma arca de tesouro ou de maldição. Esta mensagem é transmitida pelo mítico poço da “Maria-a-Negra” situado nos confins da antiga al-qasbah de Óbidos. Na tradição oral, reside nele o espírito da moura que se manifesta a quem o desce. Segundo Memórias Históricas, “quando os cristãos se assenhorearam destes sítios encontraram|…|uma moira que prenderam e trouxeram para Óbidos”. Os poços e as minas são um legado dos mouros, que eram mestres na engenheira hidráulica.
Existem outras referências que fortalecem a crença da moura encantada – a Cova da Moura e a Mina da Moura. Referida como a divindade feminina da água, ela é guardiã dos tesouros escondidos no fundo de poços e fontes. O povo rural personifica as nascentes como ‘mãe-d’água’. Consiglieri Pedroso associa a lenda à aparição de frades vestidos de branco na madrugada de São João quando as donzelas visitam as fontes de virtude nas Caldas da Rainha. “As mouras encantadas vêm cantar à porta dos seus palácios ou das grutas dos seus encantos|…|penteando seus longos cabelos com um pente de ouro fino e pedras preciosas”, conta Fernanda Frazão em Lendas Portuguesas, referindo ao palácio da moura em Óbidos.
A ideia de tesouro associado à água está presente na Fonte de Biqueirão, da antiga Quinta da Navalha, cuja água sai pela boca de um ‘bezerro de ouro’. Para Leite de Vasconcelos (Religiões da Lusitânia), a presença de elementos zoomórficosremete ao culto divino ou ao costume mortuário. Um achado arqueológico no Outeiro da Assenta valida esta crença, tendo prevalecido um culto primitivo relacionado com animais. Não surpreende que na sua proximidade ainda hoje ocorre o ritual da bênção do gado, a romaria de Santo Antão. Há uma referência arquivista que coloca o poço da “Maria-a-Negra” extramuros sob a encosta deste outeiro e entre dois rios.
Se as palavras “Maria” e “Negra” evocam os cultos pré-cristãos da deusa terramãe, a última também remete à ideia da morte e doença. Seria seguro especular que as águas contaminadas do “poço negro” teriam provocado doenças que afectaram as freiras do Convento das Donas de São Domingos, originando a construção do Aqueduto da Usseira no seculo XVI. Lê-se em Memorias Históricas: “Expostas a estes ares doentios, muitas morriam e outras sempre doentes”. Uma carta régia de 1515 refere a um ritual comum de abandonar cadáveres de escravos no Poço dos Negros em Lisboa, tendo existido uma prática idêntica no poço do torreão D. Fernando. Teófilo Braga refere aos “poços secos”, remetendo às práticas funerárias celtas e romanas (termo puticuli, segundo Varro).
O poço da “Maria-a-Negra” faz parte de crenças medievais. A sua história alerta para a poluição dos recursos hídricos e a necessidade de os preservar. A água acarreta uma dádiva que o homem não pode desperdiçar. ■
































