Tinha 14 anos quando me matriculei no curso nocturno da Escola Comercial de Caldas da Rainha. E assim conheci Maria Helena Coimbria, professora de Religião e Moral.
Parece que estou a vê-la: pequenina, um andar saltitante nos seus sapatos rasos, de «sola de ceilão», sorriso rasgado, voz de gaiata, e tão expressiva que parecia falar com o rosto todo. De uma energia contagiante, tinha o condão de nos aproximar de si, de nos fazer sentir como iguais.
Uma proximidade feita de ternura e respeito. Com uma força de vontade enorme, os obstáculos não existiam porque, muito naturalmente, eram para ser superados. Era a nossa heroína. Queriamos ser como ela, desempoeirada, sem teias de aranha na cabeça nem macaquinhos na sótão. Uma mulher do seu tempo.
Estavamos na primeira metade dos anos sessenta e as aulas de Religião e Moral, eram tudo menos religião e moral. Eu já começara as minhas crises existenciais e os meus conflitos religiosos mas com as suas aulas aconteceu um apaziguamento. De tal maneira que ainda fui crismada e a Maria Helena foi minha madrinha. Não valeu de muito porque hoje sou ateia, mas a sua influência estendeu-se muito para além das questões da religião.
Vivia-se o Concílio Vaticano II e a Maria Helena trazia para as aulas a importância do Papa João XXIII que teve a coragem de convocar um concílio «tendo em conta os desvios, as exigências e as possibilidades» colocadas à Igreja e à sociedade, contra os que nos tempos modernos apenas viam «prevaricações e ruinas (…) em comparação com épocas passados (…) e se portavam como quem nada aprendeu da História, que é também mestra da vida», conforme o discurso de abertura.
Lembro de discutirmos o Decálogo da Serenidade que contém 10 sugestões de conduta para quem deseja a paz. Todas as frases começavam: «Só por hoje» e recordo especialmente uma que suscitou grande debate na aula e me impressionou particularmente: «só por hoje, dedicarei 10 minutos do meu tempo a uma boa leitura, recordando que, assim como o alimento é necessário para a vida do corpo, a boa leitura é necessária para a vida da alma».
Maria Helena desdramatizava tudo, descomplicava tudo e fazia-nos acreditar que eram possíveis os nossos sonhos, por improváveis que parecessem. A todo o momento nos incentivava, nos incutia força e determinação, muitas vezes dando exemplos e sugestões que eram rastilhos para o que nos pareciam (im)possibilidades. Mais do que religião, ela ensinou aos seus alunos a camaradagem, a fraternidade, a solidariedade, o trabalho, a dignidade e o respeito. Ensinou-nos a pensar. A acreditar. Ensinou-nos a cidadania.
Para mim era um exemplo a seguir. E, por coincidência, tinha o mesmo nome da mãe que eu perdera: Maria Helena.
Um dia falei-lhe particularmente. Contei-lhe de mim e dos meus projectos. Generosamente, levou-me para o Museu José Malhoa, que dirigia. Durante dois anos, actualizei a inventariação do acervo museológico. Ensinou-me a escrever à máquina e a fazer palavras cruzadas, uma descoberta que me deixou maravilhada.
Lembro-me que com o primeiro dinheiro recebido quis comprar um livro e a Maria Helena aconselhou-me o «Não Matem a Cotovia» de Harper Lee, um livro que acabava de sair e que tratava dos Direitos Humanos e dos preconceitos raciais nos Estados Unidos, problemática que pela primeira vez se me colocou. Perdia-me na biblioteca do museu. Imaginem uma jovem de 15 anos, curiosa e sedenta de saber, rodeada de livros e obras de arte! Foi uma imersão que marcou para sempre a minha vida. E se hoje sou licenciada em História da Arte e sigo investigação a ela o devo também. Porque me incutiu esse gosto e me incentivou a lutar por ele.
Em 1966 passei a viver em Lisboa e a Maria Helena também me seguiria três anos depois. Foram longos tempos sem nada sabermos uma da outra. Só há cerca de dez anos a reencontrei e foi emocionante voltar a ver a minha querida professora, madrinha e amiga. Tinha urgência em falar-lhe de mim, do meu percurso de vida, e de como fios invisíveis mas inquebráveis sempre nos haviam unido. Penso que lhe terei dado alguma alegria com isso.
Sempre considerei Maria Helena como a «minha madrinha». Se analisarmos a palavra madrinha veremos que é a junção da palavra «madre=mãe» com o sufixo «inha=pequenina». Ou seja «mãezinha». A minha conclusão é de que madrinha significa, simbolicamente, uma mãe pequena ou, metaforicamente, uma segunda mãe.
Por outro lado, a palavra madrinha também designa «aquela que protege, que guia» e aí nunca existiram dúvidas, ela foi a pessoa que orientou os meus primeiros passos de jovem adolescente e quem me ensinou a caminhar sozinha. Devo-lhe essa imensa força.
Maria Helena tinha grande sentido de humor e sabia rir de si própria, uma qualidade rara e inteligente. Dizia que as coisas sempre lhe tinham acontecido inesperadamente, sem as procurar. E tinha razão. Vejamos como foi dar aulas de Religião e Moral sem nunca ter dado catequese. Filha de um anticlerical, ela e a irmã, Graça, apenas foram baptizadas aos 19 anos, por decisão própria. Sem qualquer formação religiosa, foi o próprio pai quem as preparou para a cerimónia. É que o anticlerical Augusto Dias Coimbra, era igualmente um especialista em Direito Canónico e conhecia a Bíblia como ninguém, estando apto, por isso a instruir as filhas.
Mais tarde, é convidada para dar aulas de Religião e Moral, o que a deixou surpreendidíssima. Maria Helena estava à frente do Museu José Malhoa e contactava o Patriarcado para se fundar um Museu de Arte Sacra nas Caldas. Mas as suas qualidades humanistas impressionaram o padre com quem falava habitualmente e foi ele que a convidou para dar aulas na escola comercial de Caldas da Rainha. Aceitou, tal como aceitava todos os desafios que envolvessem a juventude. Queriam uma «reviravolta nas aulas de religião e moral» e tiveram-na com M Helena. Talvez por ser independente, aberta e sem preconceitos. Pena não terem existido muitas mais professoras como ela.
Não sendo conservadora, Maria Helena era muito apegada às memórias e às tradições familiares. Falava com prazer da sua infância e da casa cor-de-rosa dos avós maternos, na Figueira da Foz. Uma casa enorme, onde nasceu por ser tradição lá nascerem todos os primos, e onde foi muito feliz, sendo com tristeza que mais tarde assistiu à sua venda. Tal como a cama onde nasceu, uma cama de ferro antiga, mas que uma tia pouco apegada ao passado decidiu vender. Era muito ciosa das coisas afectivamente importantes e simbólicas e o desprendimento de alguns familiares deixava-a desolada.
Tinha um amor incondicional pela família e adorava o pai, com quem manteve uma relação fortíssima. As suas memórias mais remotas de carinho estavam associadas ao pai, ao contrário da irmã, mais ligada à mãe. O amor pela família ia até ao sacrifício pessoal, se preciso fosse, como aconteceu quando o pai teve o primeiro enfarte, aos 49 anos, e decidiu interromper os estudos para que a irmã pudesse continuar a estudar. Casou com o Jorge nos anos setenta mas nunca se separou da Graça, a irmã mais nova um ano, mas de quem se sentiu protectora até ao fim da vida.
Um mês antes de falecer passei um domingo com ela, o Jorge e a Graça. Seria a última vez que estaríamos juntas. Levei comigo o gravador e a máquina fotográfica e, durante a tarde, tivemos uma longa conversa onde recordou a infância, a família, os estudos, a ida para o Museu, as aulas na Escola Comercial, a ida para Museu de Arte Popular, em Lisboa. São três cassetes com a sua voz juvenil, por onde desfilam as memórias, os afectos e os desafectos de uma vida preenchida e com alguns escolhos à mistura.
“As Caldas da Rainha eram um local de Liberdade para mim”
Foi assim que fiquei a saber do Museu Escolar de Marrazes. Falávamos do seu amor pelo coleccionismo, pela museulogia, da preocupação que sempre teve de que não se perdessem as memórias históricas, e que a levou a guardar tudo quanto eram objectos e documentos familiares. A certa altura disse: «olha, por isso é que eu estou a dar as minhas coisas antigas da escola, livros antigos do meu pai, provas da 4ª classe da minha mãe, coisa do meu avô… Fui guardando e agora vai tudo para o Museu de Marrazes. Já lá fui levar uma parte. Sabes que sempre tive esta ideia de juntar as coisas, de as preservar.» Soube, assim, da existência do Museu Escolar de Marrazes e das preciosas contribuições que dera para que o mesmo fosse uma realidade.
Prezava muito a Liberdade, e uma das recordações que tenho do nosso último encontro é ouvi-la afirmar: «sempre gostei muito das Caldas [da Rainha] porque, desde miúda, as Caldas [da Rainha] eram um local de Liberdade para mim!».
Maria Helena Coimbra teria feito 86 anos no passado dia 25 de Março. Partiu demasiado cedo para os que a amavam e para o muito que ainda poderia dar-nos. Pessoas como ela sempre disponíveis para os outros, lúcidas, activas e repletas de sabedoria, não deveriam partir… ou deveriam-no apenas quando o seu exemplo e o seu saber proliferassem e passassem de mão em mão, de boca em boca. Para que o mundo se tornasse melhor. Porque são pessoas assim, especiais, que fazem a vida acontecer.
Deixo-vos com um poema que fiz aquando da sua morte, em 24 de Setembro de 2008:
«Contigo / acreditei/ nas minhas asas/ e voei./ Ensinaste-me:/o tropeçar/ o cair o magoar./ Mas sempre / sempre /o erguer./ Foste a pessoa exacta/ no caminho incerto./ Como posso dizer-te adeus?»
Júlia Coutinho
Arquitecto Souto Moura, ‘Nobel’ da Arquitectura
Introvertido e genial. Estas podem ser duas das características do meu colega Eduardo Souto Moura, vencedor do prémio Pritzker 2011, o maior galardão mundial na área da Arquitectura, considerado o ‘Nobel’ da área.
Recebi-o nas Caldas mais do que uma vez, aquando do concurso para o Centro Cultural e de Congressos. Retenho, da primeira vez, uma conversa exploratória na mesa de trabalho do meu gabinete, depois seguimos os dois pelo centro da cidade até à ferida urbana que durante anos se manteve no local do CCC, pejada de viaturas sem nexo. Eduardo olhou o local num instante, onde nunca estivera, pegou em lápis e papel e, sobre o capô de um carro, traçou de imediato a sábia inserção da arquitectura naquele terreno. Diria que ali estava tudo: edifício em cunha, com amplas extensões relvadas no cimo. O resto surgiu depois. A partir daquele gesto, o desenvolvimento do programa funcional aderiu à forma, tão importante que foi o controlo volumétrico no espaço (des)urbano em causa.
O que se seguiu depois, já sem a minha presença na autarquia, foi mais uma estória da desgraçada história mais ou menos recente da cidade, há muito gerida sem um pingo de sensibilidade sobre o alcance do investimento na excelência, em qualquer área de actividade.
Também porque Eduardo Souto Moura existe, é uma honra para mim ser arquitecto num país que exporta cultural e turisticamente a Arquitectura Portuguesa, como poucas outras áreas do conhecimento e da prática.
Caldas da Rainha, hoje, podia orgulhar-se de ter uma obra nascida de um ‘Nobel’ da Arquitectura, com os imensos ganhos e de repercussão internacional que esta distinção lhe traria, não só nesta geração, como em todas as próximas, enquanto a obra durasse. E ela seria eterna, porque também perene será a obra inegavelmente coerente de Eduardo Souto Moura, de quem ainda esperamos muito mais.
Jorge Mangorrinha
Venho esclarecer a realidade
Não podia ficar indiferente à notícia divulgada na Gazeta das Caldas no dia 25 de Março, “Despedimento Incorrecto”, já que é, por um lado totalmente distorcida da realidade e, por outro lado, ofensiva, não só para os destinatários expressamente referidos, como procura atingir todos os paroquianos de Alvorninha, já que se auto-intitula denunciadora de uma realidade que só existe no imaginário de quem a escreveu.
É uma notícia que nos envergonha a todos e que precisa de ser esclarecida.
Assim, em nome pessoal e em representação de muitas pessoas que me apoiam nesta iniciativa, venho por este meio, e de um modo inequívoco, expressar o meu total apoio ao Sr. Padre Rui Gomes, nosso Prior, e afirmar que repudio, ou melhor, repudiamos a notícia divulgada, e demarcamo-nos totalmente das afirmações e insinuações contidas no texto elaborado pela referida senhora.
Reconhecemos e apreciamos o trabalho desenvolvido pelo nosso Prior em todas as áreas e estamos disponíveis, se necessário, a recorrer para as devidas instâncias para desmascarar as leviandades mencionadas, já que de um modo gratuito, nos ofendeu a todos e principalmente os que colaboram na Paróquia, prestando-se assim a fazer uma triste figura em praça pública.
Assim sendo, não vou comentar em detalhe o artigo porque desceria ao mesmo baixo nível, mas reafirmar que se necessário disponho de elementos probatórios que contradizem a apreciação feita pela Sra. D. Maria Amélia Silva.
No entanto, não posso de deixar de mencionar que só quem tem memória curta, não se recorda do estado lastimável, desprezável, miserável, em que se encontrava a “limpeza” no tempo em que a referida senhora era a responsável, e das atitudes totalitaristas que tomava, usando a posição que tinha para atingir os seus próprios fins.
Também para quem tem memória curta, quero recordar as palavras proferidas na Homilia pelo Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, aquando da tomada de posse do nosso actual Prior, “… Deixemo-nos de bairrismos…”, ou seja, deixarmos de vez as mesquinhices, o dar importância a coisas menores que nos cegam e nos afastam uns dos outros.
Só devemos fazer apreciações e considerações daquilo que sabemos e que em circunstância alguma pode ser desmentida… caso contrário, são difamações graves impróprias de um cristão.
Seguindo a mesma linha editorial sugerida pela Sra. D. Amélia, não posso terminar, sem deixar de pedir a Deus que nos dê um coração puro e verdadeiro, para nos amarmos uns aos outros como irmãos…
Jorge Manuel dos Santos Rodrigues
































