Mais uma obra em leito de cheia?

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Gazeta das Caldas
Paulo Lemos

Há alguns anos, quando trabalhava no Polo do Oeste do Ministério do Ambiente, fui convidado, por um presidente de Câmara da região, para uma reunião destinada a identificar os leitos de cheia no respectivo Plano Director Municipal.
O leito de cheia é a zona nas margens das linhas de água potencialmente alagáveis em função de fenómenos meteorológicos extremos que provoquem inundações.
Para a identificação destas áreas são usados critérios técnicos mas também a memória histórica nomeadamente qual a área inundada pela chamada cheia dos 100 anos.
Nesse sentido fiz-me acompanhar do guarda-rios daquela área que, tendo já muitos anos de serviço, tinha assistido a uma cheia extrema e que podia assim ajudar na delimitação.
À medida que o meu colega ia identificando no mapa as áreas inundadas, os rostos dos autarcas presentes foram ficando sombrios.
Como seria de esperar, parte da área identificada como inundável abrangia zonas que se pretendia urbanizar.
Escusado dizer que não voltei a ser convidado para mais nenhuma reunião do PDM. Os autarcas preferiram negociar com os técnicos de Lisboa que tinham a competência legal, mas não o conhecimento do terreno.
Isto tudo a propósito da recente notícia de que os prédios em frente à EDP vão ser reabilitados.
Não tenho nada contra a reabilitação de algo que era uma mancha na paisagem numa das entradas da cidade.
O que foi errado foi o licenciamento da obra.
O Regulamento dos Serviços Hidráulicos publicado em 1892 e a Lei de Águas em 1919, já incluíam o conceito de margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, consagrado uma faixa de proteção de 10 m de largura para cada lado da margem. A construção nesta faixa de proteção está fortemente limitada. A actual Lei da Água de 2005 mantém esta definição
Dez metros é um valor bastante modesto se tivermos em conta o que pode acontecer em situação de cheia em que uma pequena torrente se transforma num autêntico rio e leva tudo à sua frente causando milhões de prejuízo e, muitas vezes, vítimas. Basta ligar a televisão para ver o que se passa quer em Portugal quer noutros países. Felizmente são fenómenos raros mas , com as alterações climáticas, a probabilidade de ocorrência está a aumentar.
Não conheço o processo de licenciamento destes edifícios, mas basta olhar para ver que existe construção na faixa dos 10 metros do Rio da Cal.
E não se trata, como foi referido à Gazeta, de “questões técnicas “. Mesmo que os engenheiros do projecto tenham encontrado uma solução técnica para proteger os edifícios de inundação, o facto é que foi criado junto do Rio da Cal um obstáculo físico de grande volume que, em caso de inundação, poderá ter consequências negativas a montante ou a jusante.
Em muitos países as linhas de água são encaradas como uma mais valia ambiental e um factor de qualidade de vida. As margens das linhas de água são transformadas em espaços verdes que contribuem para a manutenção da biodiversidade, para o lazer ao mesmo tempo que são mantidas livres de obstáculos físicos que possam impedir o fluxo de água em caso de cheia. Infelizmente, para muitos autarcas e empresários em Portugal as linhas de água são um obstáculo que convém “emanilhar” para manter longe da vista do público e maximizar a área de construção. É lamentável que tenha sido esta a filosofia que prevaleceu aquando do licenciamento deste projeto.
Uma área tão nobre à entrada da nossa cidade poderia ter sido valorizada de modo a ser fruída por todos e não apenas pelos futuros proprietários dos 73 apartamentos deste empreendimento.

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