Nasci a seguir ao 25 de abril, num país em liberdade. Mas, em casa, aprendi a ouvir histórias de perseguição e censura do Portugal em que os meus pais tinham crescido. O tema da liberdade de imprensa sempre me foi caro; o meu pai foi tipógrafo, colaborou em jornais regionais, mesmo no seu tempo de guerra colonial, onde imprimiu a Voz da Guiné e fez parte da redação do jornal de caserna Põe-te a pau. Saber escrever nas entrelinhas tornou-se numa arte da subtileza durante a longa repressão do salazarismo.
Continua a haver motivo para assinalar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Numa visão dualista, celebramos a liberdade, mas sobretudo tememos o seu reverso, a subsistência de ameaças ao seu exercício.
É função da imprensa prover uma informação abrangente e pluralista, baseada em fatos questionados, pesquisados e validados, independente dos poderes instituídos. Afigura-se, portanto, contranatura negar-lhe esse exercício fundacional, calar-lhe a voz ou coagi-la à manipulação dos fatos. Mesmo que a medida censória seja “A bem da nação”, habilidosa justificação em nome da qual, entre junho de 1926 e abril de 1974, as páginas dos jornais exibiam “Este número foi visado pela comissão de censura”.
A minha perceção é muito visual. Quando penso em liberdade versus censura desfilam na minha galeria mental diversas caricaturas e cartoons, formas sagazes de passar a mensagem crítica através do humor.
Em 1936, Francisco Valença vê a sua caricatura “Escanhoadela Mestra” ser “visada e pisada pela Censura”. Proibida no “Sempre Fixe”, que pertencia à Renascença Gráfica detentora do Diário de Lisboa, dirigido por Joaquim Manso, o artista resolveu oferecê-la a este jornalista, aí representado como barbeiro segurando uma navalha com a frase “Coerência (Artigo de 8 Março)”, e hoje faz parte do Museu da Nazaré com o nome do escritor.
Desde o século XIX, a caricatura encontrara na imprensa um espaço mais visível e de denúncia. É a ameaça à liberdade de imprensa que instiga as acutilantes ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro sobre o decreto de 1890, conhecido por Lei da Rolha. Essas e outras caricaturas alimentam as suas célebres revistas d’ O António Maria, Ponto nos ii ou A Paródia, onde o traço genial exibe uma observação mordaz da contemporaneidade.
Como alerta Irene Vallejo, no livro O infinito num junco, é um erro considerar o humor como um fenómeno marginal. Na realidade, existe um humor rebelde que quebra a aura do mundo autoritário ao ter capacidade de deslegitimar o poder; por isso inquieta e é punido. Até nas democracias contemporâneas avivam-se polémicas sobre os limites do humor, a fronteira entre o consentido e a ofensa, nas palavras e nas imagens.
Tenhamos presente a tragédia do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo. O comentário satírico patente nas edições anuais do World Press Cartoon, nas Caldas da Rainha, não é gratuito e nem sempre isenta os seus autores do cuidado da vigilância. A coação da imprensa não ficou encerrada no passado, nem é exclusiva dos regimes autoritários como o Estado Novo; o poder sempre teve a tentação de a controlar. A liberdade da imprensa ainda não é um dado adquirido. ■
Liberdade visada e pisada
- publicidade -
































