LETRA DE MÉDICO – Cidadania

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Abel Salazar (1889-1946), médico, professor, investigador e pintor (nada salazarista – diga-se, antes um resistente ao regime) afirmou: “um médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe”. Por sua vez, João Lobo Antunes (1944-2016), também médico e professor, mais nosso conhecido, apela, no prefácio do livro “Numa cidade feliz”, “ao desenvolvimento de uma genuína cultura de intervenção cívica”, ao reflectir sobre o retrato de um médico para o nosso tempo.
No meu 6º ano dos liceus (agora 10ºano), decorria o ano lectivo 1973/74, tive uma disciplina chamada Organização Politica e Administrativa da Nação. O manual da disciplina, que ainda hei-de procurar aqui pelos fundos das estantes – para certamente sorrir com trechos datados do tempo da outra senhora, começava, no entanto, de forma muito assertiva, que ainda recordo: “O Homem é um ser eminentemente social e só em sociedade pode viver”. Deixemos, por ora, de parte, a questão de que sem liberdade o Homem não se realiza em sociedade. Interessa referir que o conteúdo da frase, ainda que óbvio, convém ser lembrado, porque vivemos tempos, globalmente falando, de uma cultura de feroz individualismo, ao nível de instituições e até de nações, na sequência da supremacia actual das teses do neoliberalismo e do monetarismo, em detrimento do humanismo.
É neste contexto que se compreende que o médico aceite sair do espaço das salas do hospital ou dos gabinetes de consultórios para dar o seu testemunho público sobre assuntos de interesse para a comunidade e que seja uma voz activa, comprometida com os valores da participação cívica, do colectivo, duma sociedade mais livre, consciente e informada.
O nosso concelho e a nossa região não estão, felizmente, despojados de genuína intervenção cívica activa. Há vários exemplos, vindos de diferentes campos. Poderemos enumerar alguns: o Conselho da Cidade, a associação Olha-te, a Ordem do Trevo, a Comissão de Utentes, as Ligas de Amigos do Hospital e dos Museus, os clubes de serviços humanitários… Também poderemos falar do voluntariado, no Hospital, no Banco Alimentar, das associações de protecção dos animais ou mesmo das associações de classe, das IPSS, das associações e agremiações recreativas, culturais e desportivas espalhadas pelas várias freguesias do concelho.
Não se compreende, por isso, que a outros níveis falte tanto empenho e sentido cívico de intervenção e que haja uma grande camada da população local que se alheie das grandes causas, que, por exemplo, o Orçamento Participativo tenha tão pouca adesão, e que a percentagem de votantes do concelho, em eleições, tanto de âmbito nacional como local, seja sempre inferior à média nacional (apenas 47,8% de votantes nas últimas autárquicas).
Parecem, de facto, merecedoras de maior atenção por parte de uma população mais vasta as grandes causas sociais: os cuidados hospitalares públicos, a defesa da cultura e do património, a sustentabilidade ambiental, a mobilidade urbana.
Não pretendendo desqualificar quem faz da participação política a sua carreira profissional, apraz-me elogiar e valorizar aqueles que dão genuinamente o seu tempo – seja em partidos políticos, movimentos cívicos, ou fora deles – a favor da Coisa Pública, da arte de fazer política no sentido nobre do termo, em nome da Polis, sem olhar a lugares, prebendas e sinecuras.
Dentro desta linha de intervenção cívica do médico cidadão não faltarão assuntos para abordar em próximas crónicas.

António Curado
curado.a@gmail.com

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