Nesse dia 19 de Junho tinha eu cinco anos e mandaram-me brincar para a estrada. Ao tempo brincar na estrada não era perigoso porque havia pouco ou quase nenhum trânsito.
A estrada era de macadame e uma vez por ano vinham os presos da cadeia comarcã das Caldas da Rainha para cavar as valetas. Os carros de mão e as pás-balde eram guardados no nosso quintal. Foi por essa altura que me mandaram brincar para a estrada para que as mulheres pudessem fazer o seu trabalho entre panelas de água quente e lágrimas felizes. Parece que foi ontem; o tempo voa. Eu já tinha outra irmã de dois anos (quase três) tão forte que o meu avô lhe chamava morcela. Pelo contrário esta irmã que nasceu em 19 de Junho foi sempre frágil. No Montijo teve uma gastrite grave e um vizinho nosso que tinha uma taberna (o senhor Ilhéu) emprestou 500 escudos para o que fosse preciso. Nos vivíamos na Rua Sacadura Cabral, perto do cemitério e essa proximidade arrepiava toda a gente. Nunca me vou esquecer de um garoto que foi atropelado no Afonsoeiro por uma motorizada e morreu. A minha irmã mais nova safou-se dessa mas depois vieram outras coisas como a tosse convulsa cujo remédio era um xarope feito artesanalmente com açúcar louro e figos da Índia. Nesse tempo a morte era uma indústria e a vida era um artesanato. Quando vinha a Lisboa no vapor da carreira a minha irmã mais nova só bebia água da bilha que o capitão trazia de um poço particular. Escrevo esta crónica no lugar dos olhos de água de Alcanena num dia de sol e pó e nada melhor para a ilustrar que dois retratos da filarmónica da nossa terra entre sol e pó, uma a preto e branco, a outra a cores. Ontem e hoje, pode ser a legenda. Os mortos empurram os vivos: o nosso tio Joaquim empurra o nosso primo Luís Almeida. Estamos todos nas fotografias. Todos.
José do Carmo Francisco


































