José Aurélio – a incessante procura

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Agendámos a entrevista para uma segunda-feira, dia de encerramento dos museus.
Recebe-me um homem discreto, suave nos gestos e na voz, com um olhar sereno que cintila quando fala na arte como uma viagem de sublimação e transcendência.

Carlos Querido

Na galeria deserta a conversa flui entre peças silenciosas, ao sabor da corrente de palavras que transportam memórias de uma vida intensa de trabalho criativo.
Das pequenas histórias que nos encheram a tarde, recorto apenas algumas para uma página de escassas dimensões para uma vida tão cheia.

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1. A Mão/Pomba de Óbidos (1966)
Não há quem tenha crescido na região, que não conheça aquela e gigantesca Mão/Pomba que há décadas se ergue à beira da estrada para Óbidos.

Conta José Aurélio, que Albino de Castro e Sousa, à época presidente da Câmara de Óbidos, lhe telefonou “muito aflito” quando recebeu um despacho do governo central a recomendar a construção de um monumento aos Heróis de Angola.

Deslocou-se à Câmara, onde o presidente lhe disse que tinha aquela incumbência do governo, mas que o município era muito pobre e dispunha de pouco dinheiro para realizar tal tarefa, pedido que surpreendeu o jovem escultor, porque era amplamente conhecida a sua oposição ao regime vigente.

Em início de carreira, sem ter ainda qualquer obra sua no espaço público, José Aurélio aceita a empreitada, com o compromisso de baixo custo, e dedica-a às mães dos “heróis de Angola”, como uma “mensagem esperança”.

Como lema, elege uma estrofe de Camões, inscrita na base da escultura: «E aqueles, que por obras valerosas/ Se vão da lei da morte libertando.».
Explica-me o autor, que a escultura representa “a alma que se está a soltar do corpo… a pomba está-se a libertar como a alma se liberta do corpo”.

A produção da obra foi feita pelo escultor com o apoio dum pedreiro, tendo sido a cofragem a parte mais difícil de execução: “fiz a cofragem em folhas de flandres e tivemos de dobrar o ferro”.

Com alguma desolação diz-me que viu muitas vezes na montra da Foto Franco fotografias de casamentos em que os noivos posavam na escultura que, apesar de ser amigo do dono do estabelecimento, nunca pediu um exemplar de uma dessas imagens, e que hoje tem pena, porque gostaria muito de ter um desses registos.

2. Na SECLA, com Ferreira da Silva
A cerâmica, com a magia ancestral da arte do fogo, foi sempre uma das paixões de José Aurélio, que começou essa aventura no ano de 1957, na Olaria de Alcobaça, que considera uma “casa de referência” dessa arte.

Logo no início da sua atividade de ceramista, faz uma exposição na Galeria do Diário de Notícias, onde conhece Thomaz de Mello, que lhe compra algumas peças e que o convida a trabalhar na SECLA.

Na SECLA substitui a ceramista Hansi Stael e conhece Ferreira da Silva, que também passou pela Olaria de Alcobaça.

Da fábrica caldense recorda com particular saudade a oficina que Ferreira da Silva batizou por “CURRAL”, com a explicação que deu à Gazeta das Caldas, no Suplemento de 28.12.2001: «[…] naquele espaço onde existia “a lama, a amálgama da terra por trabalhar. Dávamos largas à grande imaginação e à grande coragem” […]. Aqui trabalhavam afincadamente estes homens que “éramos como quatro náufragos numa jangada, ou melhor, quatro feras naquele curral, e enfim, por isso assim ficou apelidado […]”».
Diz-me José Aurélio, que muitas vezes se refugiava no “CURRAL”, com o Picas [José Picas do Vale], o Barroso [Guilherme Gomes Barroso] e o Galo [Henrique Galo], e que o impressionava o facto de estes artífices, quando pisavam o barro, levantarem os braços e cantarem, “num ritual que fazia lembrar os índios americanos”, esclarecendo-me que “o processo de amanha do barro” consistia em “amolecê-lo, pondo-o em condições de ser trabalhado”.

Sobre Ferreira da Silva, refere a sua admiração por ser “um trabalhador incansável”, “muitas vezes genial”, admirando-o, no entanto “mais como artífice do que como artista”.

Enquanto trabalhou na SECLA, frequentava o Café Central com Ferreira da Silva e foi lá que conheceu Luiz Pacheco. Nunca foram muito próximos e por essa razão ficou surpreendido com uma carta que recebeu do escritor quando este saiu das Caldas.

Lateralmente, fala-me da Galeria Ogiva, que criou em Óbidos, um espaço de divulgação e de promoção da arte contemporânea, elogia o “excelente trabalho” de Mafalda Milhões naquele espaço e lamenta o facto de esta agente cultural ter sido afastada da antiga Escola dos Casais Brancos, onde tinha a livraria-editora Bichinho de Conto.

3. A arte como sublimação e transcendência
Pergunta irresistível na entrevista a um artista: José Aurélio, o que é a arte para si?
A arte, diz-me, “até hoje ninguém a conseguiu definir. É sublimação, transcendência, manifestação que nos aproxima de Deus, definindo Deus como uma força universal, que não se sabe de onde vem nem para onde vai”.

Esclarece-me que não se refere ao “Deus da Bíblia” mas a uma energia indefinível que nos rodeia.

E confessa: “em muitas coisas que fiz consegui sublimar-me; tenho trabalhos que olho para aquilo com um sentimento de estranheza e não é meu; é o reflexo de uma viagem”.

Elege Picasso como o expoente máximo do talento e conta que um dia viu o célebre pintor com Jacqueline numa rua de Capri, quis cumprimenta-lo, mas ficou “paralisado, a transpirar de emoção”.

Considera que Picasso “viveu em pesquisa permanente; nunca se encontrou verdadeiramente; esteve até morrer à procura de si próprio”.

4. Um artista sempre por realizar
Tal como o seu ídolo, José Aurélio revela a insatisfação de quem se procura incessantemente na arte.

Leio-lhe a lista de 24 obras em espaço público – em Portugal e no Brasil – constante do currículo que circula na NET, e ele refere-me duas omissões: o Monumento à Liberdade no Forte de Peniche e a Homenagem à Aviação em Alfragide.

Apesar disso, não se considera um artista realizado.

Fala-me do seu gosto por poesia, de Nuno Júdice, de quem é admirador e foi amigo, e do poeta alcobacense Levi Condinho, de quem editou um livro e que escreve nos seus catálogos.

Não haverá melhor forma de terminar este trabalho do que com um trecho dum poema de Levi Condinho: “Aurélio o poeta das mãos / mágicas/ a ciência do metro medido/ pelo coração…”.

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