JOAQUIM ALVES – “trabalhei em todas as estações da linha do Oeste”

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JOAQUIM ALVES

 

 

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75 anos
Dois filhos e duas filhas, quatro netas e um neto

Posso dizer que esta é a estação da minha vida. E trabalhei em todas as da linha do Oeste, desde o Sabugo (concelho de Sintra) até à Figueira da Foz. Vida de ferroviário é assim. Uma vida a saltar de estação em estação ao ritmo das escalas, dos turnos, dos destacamentos, dos serviços, em vigília permanente aos comboios para que tudo corra bem e não haja acidentes.

É certo que foi na estação de S. Mamede (Bombarral) onde trabalhei mais anos, quase 20. Mas vivi mais de metade da minha vida em Óbidos, no primeiro andar da estação. O ruído dos comboios nunca me incomodou. Pelo contrário, conhecia-lhes os horários, o ruído das locomotivas e das automotoras, sabia se vinham a horas ou atrasados e até identificava circulações especiais, alterações de cruzamentos e se alguma composição levava os freios apertados, ou se as rodas tinham lisos (deformações).
Foram muitos anos disto, mas quando eu tinha 18 anos pensava que estava predestinado para outros voos: alistei-me como voluntário na Força Aérea. Mas depois de ter estado em Sintra, na Serra da Carregueira e em Paço de Arcos, depois de ter feito lá um curso de mecânico-electricista, decidi pôr-me a andar porque, na verdade, lá não se fazia nada.
E eu era um rapaz que já trabalhava desde os 11 anos. Hoje isso até é proibido. Mas é verdade.
Eu sou das Caldas da Rainha. Vim ao mundo no dia 17 de Julho de 1940. Nasci no cemitério. O meu avô era coveiro ali no cemitério velho e a família vivia lá. Uma coisa curiosa: naquele tempo a Secla não tinha telefone e usavam o do cemitério. E era eu ou as minhas irmãs que às vezes íamos chamar as pessoas da Secla.
Estudei na 1ª e 2ª classe na escola primária perto da polícia de trânsito e a 3ª e 4ª classe na escola primária que havia na antiga Praça do Peixe (Praça 5 de Outubro). Depois fui para a Escola Industrial e Comercial Rafael Bordalo Pinheiro, mas só fiz o primeiro ano do Curso Geral de Comércio porque o meu pai morreu e eu tive de ir trabalhar. Aos 11 anos.
Entrei no Thomaz dos Santos como marçano (empregado de balcão) e o meu primeiro ordenado foram 100 escudos (50 cêntimos de euro). Fiquei lá até aos 18 anos. O senhor Thomaz dos Santos queria que eu fosse caixeiro viajante da firma, mas eu meti na cabeça que queria ir para a Força Aérea.
E fui. Mas voltei. Estive uns meses na SEOL a fazer topografia. Tinha 21 anos e comecei a namorar com uma rapariga de S. Martinho do Porto (com quem viria a casar). O meu sogro era jardineiro do senhor Camarinhas, que era chefe do Serviço de Fiscalização de Receitas da CP e foi pela mão dele que eu vim parar ao caminho-de-ferro.
Os comboios é que ditavam a nossa vida

Andei um ano a estudar os manuais da CP. Tive de memorizar todas as linhas e todas as estações e apeadeiros do país. Estudei regulamentação. Para os comboios, para as estações, para as tarifas de passageiros e para os despachos de bagagens.
E em 1964 comecei a trabalhar como praticante de factor nas Caldas da Rainha. Na altura tive um bom instrutor, um senhor que era factor de terceira e que se chama Valdemar Duarte Cipriano e com quem aprendi muito. Era um instrutor informal porque o meu instrutor de facto era um inspector de Alfarelos que vinha cá poucas vezes.
Depois de praticante subi a factor de terceira e fui para Monte Real, onde vivi na estação da CP. Quando fui promovido a factor de segunda fui para S. Mamede. Na altura, já havia electricidade na rua, mas eu tinha turnos das oito da noite às oito da manhã em que trabalhava à luz de um candeeiro a petróleo.
Quando ascendi a factor de primeira tive a sorte de continuar em S. Mamede. É claro que de vez em quando era destacado temporariamente para outras estações. Levava uma cama amovível e dormia nas salas de espera ou no gabinete dos telefones. Fazia turnos da noite às vezes em lugares meio recônditos, com poucos passageiros e ninguém nas redondezas.
Mas os comboios é que ditavam a nossa vida. Era preciso pedir o avanço à estação seguinte, avisar as guardas de passagem de nível, vender bilhetes, fazer despachos de bagagens, dar a partida, dar horas, dar ordens aos serventes e agulheiros, zelar pela estação, fazer a contabilidade, enviar o dinheiro para Lisboa. Ainda hoje sonho com o trabalho. Sobretudo com a grande responsabilidade que era o movimento dos comboios. A linha do Oeste é de via única e os regulamentos são – ainda hoje! – muito rigorosos para que nenhum comboio choque contra outro.
Quando em 1994 fui promovido a chefe de estação, enviaram-me para Crestins, na linha do Póvoa. Estive no Norte dois anos, mas depois vim para Lisboa onde fui chefe do Rossio. Reformei-me quando era chefe de estação de Torres Vedras, em 1998, com 58 anos. Eu tinha feito uma operação ao coração, os médicos recomendaram que eu não trabalhasse mais e a Junta Médica ditou a minha passagem à reforma.
Vivi nesta estação de Óbidos desde 1967 até 2014. Como sempre tive casa de graça pela CP, nunca me lembrei que um dia iria precisar de uma. Hoje vivo nas Caldas, num apartamento alugado, porque tive um AVC e fiquei com medo de continuar a viver em Óbidos. Aliás, Óbidos já não é estação. Tecnicamente é um apeadeiro. Eu até era uma espécie de guarda aqui da gare. Cheguei a ligar para a GNR a meio da noite quando vi uns tipos aí a roubar azulejos. Agora isto está meio desprezado, apesar da estação ser muito bonita. Mas a linha do Oeste é isto. Toda a vida ouvi falar na electrificação e acabei por me reformar e continua tudo como quando cá entrei. Ou pior ainda porque antigamente havia gente e agora nem isso.

 

 

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