Isabel Castanheira, uma vida cheia, de livros, de gatos e de Bordalo

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Na vasta calçada, um felino eriçado interpela os poucos transeuntes com ar rezingão, dorso arqueado e cauda vertical.
É o Gato Assanhado de Bordalo Pinheiro, integrado na Rota Bordaliana caldense, inspirado no gato Pires, célebre pela ligação ao Mestre e pela teimosa recusa em abandoná-lo. Desaparecido no dia do falecimento de Bordalo, encontram-no escondido sob as coroas de flores que cobrem a urna.

Carlos Querido

Na parede em frente, uma varanda emoldurada, à direita por três andorinhas e um lagarto, à esquerda pela Gatinha Bordaliana da autoria das ceramistas “Ana + Betânia”.

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Subo ao primeiro andar, ao encontro da Isabel Castanheira, e mergulho num mundo de livros e objetos de barro que convocam o passado que ali se refugia como se fosse presente.

Há peças de barro de todos os formatos e feitios, seres ronronantes que treparam pelas prateleiras e ali ficaram, e o Zé Povinho em várias versões, com ar de desafio e sorriso soez e matreiro.

Num ambiente de intimidade cúmplice, a Isabel vai desfiando um pouco da história da sua vida.

Nasce em Timor, onde o pai era funcionário público. Trazem-na para Caldas um mês depois. O destino era Angola, onde passa a infância e a juventude e de onde regressa com o irmão em 1974.

Nas Caldas sofre com o estigma do estatuto de “retornada” e desespera à procura de um emprego que não encontra.

A paixão pelos livros dita-lhe um sonho: e se abrisse uma livraria?

Acompanhada pelo irmão, solidário e cúmplice toda a vida, procuram um local para instalar uma livraria.

Escolhido o local, o Registo Nacional de Pessoas Coletivas não aceita nenhum dos vários nomes propostos.

Um dia descobre o nome, ali tão perto, no número da porta: Loja 107.

Em sociedade com o irmão, António Castanheira, abre a Livraria 107, que fará da cidade um roteiro literário por onde passam «mais de cem autores a apresentarem as suas obras».

Havia na loja dois gatos, o Gil Vicente e a Florbela Espanca, e um em casa, que dava pelo nome de Asterix.

No início era apenas o Gil Vicente, mas um dia uma amiga fotografou-o à noite «ao lado de uma gatinha desconhecida». Afinal, havia uma pequena intrusa escondida atrás dos livros, a tal que veio a ser Florbela.

Das muitas outras histórias que me conta, escolho esta, da relação comovente da Isabel com um ceramista caldense.

Carlos Constantino apareceu um dia lá na loja com uma peça de grandes dimensões, «modelada mas não acabada, isto é, sem cozedura, porque ele nem tinha forno onde ela coubesse; era uma obra temporária, de homenagem ao Bordalo Pinheiro».

A livreira deixava a peça sobre um balcão e à noite cobria-a com um pano molhado «para evitar que o barro secasse e a peça se partisse».

Depois dos dias gloriosos da livraria, veio o encerramento «muito doloroso».

Não conseguia fazer caixa para as despesas que tinha, explica ela, com uma mágoa que o tempo não apagou.

Seguem-se tempos difíceis.

E o que faz uma livreira sem os livros que são a sua paixão de sempre?

A Isabel procura um velho encadernador de Leiria «da velha escola», entra na oficina e pede-lhe que lhe ensine o ofício.

«Deve ter sido muito estranho para ele; uma desconhecida a pedir-lhe uma coisa daquelas», comenta hoje acerca do “mestre” que não a deixava, sequer, desmembrar um livro, porque não confiava na aluna.

Não se dá por vencida e vai frequentar um curso de encadernação em Madrid, durante duas semanas, «com o encadernador que fornecia a Casa Real».

Aprendeu, comprou material e dispôs-se a montar a sua oficia, mas não resultou porque, entretanto, apareceu-lhe a “artrite reumatoide”. «As mãos tremelicavam-me e não conseguia fazer nada de jeito».

Os livros, sempre os livros.

O passo seguinte, já que não consegue encaderná-los, é fazê-los.

E fez vários, de que me recordo porque a acompanhei sempre nessa aventura.

Começou com o Caldas de Bordalo, com o design do Miguel Macedo e a edição do João Paulo Cotrim.

Um sucesso que levou a nossa Cidade a todo o País. Tive a honra de o apresentar no CCC, no Museu Bordalo e no El Corte Inglés.

Segue-se Una Piccola Storia D’Amore, com o mesmo designer e o mesmo editor, que conta o deslumbramento de Bordalo por Maria Visconti, de quem o Mestre nos deixou um busto que registou a sua beleza para memória futura.

Diz-me a Isabel que esta aventura romântica era «assunto proibido», não havendo qualquer referência nos estudos bordalianos.

Leu «todas as cartas que havia no Museu Bordalo Pinheiro» e encontrou uma endereçada pela Visconti a Justino Guedes, na qual conta a relação com Bordalo em Paris durante a Exposição Universal de 1889.

Seguem-se À Sombra dos Plátanos, edição da Gazeta das Caldas, constituída por textos publicados neste jornal, Quase Todo o Bordalo, com design do Jorge Silva e edição do João Paulo Cotrim, que faleceu antes da conclusão do livro, e o Roteiro dos Ceramistas com fotografias de Carlos Barroso.

Mas há mais, porque ninguém para esta livreira que não sabe desistir.

«Tive um AVC», confidencia-me, «nunca estamos preparados e eu precisava de ter alguma coisa para fazer».

E assim surge um novo projeto, que tem nome – O Meu Amigo Rafael – e conteúdo: «relata tudo o que aconteceu nas Caldas, na vida dele como oleiro, baseado nos testemunhos de muitos autores, particularmente Fialho de Almeida e Ramalho Ortigão».

O projeto a que está associado Jorge Silva, aguarda apoio para a edição.

Despeço-me da Isabel e olho uma vez mais o gato bordaliano que me aguarda na rua. Reconheço-o. É Rafael Bordalo Pinheiro tal como se autocaricaturou em O António Maria de 19 outubro de 1882, sobre uma coluna, proclamando solenemente: Já fui gato.

Só podia estar naquele local: com vista para a janela da Isabel.

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