Intervalo Doloroso | Os desertores

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Gazeta das Caldas

Um dia alguém há-de perguntar: onde estavas quando o Caldas se apurou para as meias-finais da Taça de Portugal? Adepto que sou da memória, recordarei que estava na Casa Antero a beber um copo de vinho e a comer ovos rotos. Ficámos felizes com o apuramento, o clima era de alegria descontraída. Ninguém levou a mal que na mesa ao lado alguém se tivesse declarado surpreendido com a existência de um clube de futebol caldense. O desconhecimento não é afronta, muito menos em matéria de bola. Afinal, como será quando a euforia esmorecer?

Num país onde o futebol se confunde com um desfile de arrivistas e tiranetes, é revitalizante assistir ao gáudio duma comunidade perante o feito do seu clube. Foi bom de ver a euforia na rua, as manifestações de apoio, dedicação. Mas com o futebol é sempre assim. Pergunto-me por que não pode ser com outras coisas? O que haverá no desporto, nomeadamente no futebol, que atrai tanta militância, por vezes até sentimentos extremos de raiva e de ódio? O que haverá de especial no desporto que falta a outras causas?
Questiono-me, por exemplo, por que não fazemos dos CTT um clube de todos nós? Seria interessante. Conjugaríamos esforços, reuniríamos forças, aglutinaríamos camadas explosivas de indignação para exigirmos aquilo que é por de mais óbvio ser nosso direito: um serviço decente de correios, com funcionários tão alegres e empenhados como os jogadores do Caldas, motivados por nos sentirem do seu lado, exigindo condições de trabalho adequadas a serviços de excelência. Forçaríamos a direcção do clube CTT a proporcionar essas condições, para que fosse exequível sonhar com a taça. Não a que se disputou em Braga, mas a que disputaríamos nacionalmente.
É óbvio que estou a delirar. Nada disto será possível. Uma das razões para que nada disto seja possível é a de não nos distrairmos com a nossa vida como nos distraímos com o futebol. Vivemos como se viver fosse uma obrigação. Julgo que muitos de nós, na verdade, nem chegamos exactamente a viver, somos forçados a uma servidão que nos aparta da vida. Depois encolhemos os ombros, resmungamos, metemos as mãos nos bolsos, abdicamos. Exactamente o contrário do que fazemos quando o nosso clube leva a bola ao fundo das redes. No fundo, desertamos.
Vem-me à memória a sala cheia no Teatro da Rainha para ouvir Jorge Silva Melo e Isabel Muñoz Cardoso lerem “Morro como País”, do grego Dimítris Dimitriádis. Também é sobre deserção, o texto. Foi escrito na ressaca de uma ditadura, de raiva, como um berro, contra os desertores: “Só os traidores têm coragem, matar a pátria é ser-se sábio”. Parece um paradoxo, não é? E talvez seja. Talvez o paradoxo esteja neste fundo de indiferença para com tudo quanto interfira com o nosso cómodo estatuto de desertores. Afinal, para quê darmo-nos ao trabalho com o trabalho? Temos a bola, madame blanche, parola. E temos, por consequência, os oportunistas e os tiranetes a tomar conta dos lugares de decisão.
Parece um paradoxo, não é? Eis como é possível em democracia medrarem formas de ditadura, legitimadas tanto pelo silêncio como pelo excesso de ruído. Um mundo de surdos a tentar comunicar com um universo de mudos, delimitados por essa coisa da rede social, essa coisa estranha onde o real não é bem real e a verdade é pós-verdade e tudo acontece e desancontece à velocidade da luz. Há vários preços a pagar. A factura da electricidade é bom exemplo. Mas a pior herança de uma sociedade de desertores é a desertificação das ideias, futuro de lamúrias inconsequentes e revoltas postiças com taça para vencedor exclusivo: a injustiça.

fialho.henrique@gmail.com

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