Ajudem o Hugo
Oito de Setembro de 2017, debate entre os candidatos à presidência da Câmara Municipal de Caldas da Rainha. Ouço o Dr. Tinta afirmar, sem esboçar sorriso, que a Câmara tem promovido um ataque sem tréguas ao graffiti. Senti-me ambivalente. O meu lado comics julgou caricato que um homem chamado Tinta declarasse guerra ao graffiti, enquanto a face séria rapidamente concluiu: guerra perdida. Ainda assim, dei o benefício da dúvida. Apreciando sobremaneira passeios a pé pela cidade, fui fotografando ao longo de dias, semanas, meses, locais onde isso a que chamam de graffiti podia ser atacado, dizimado, expurgado, desratizado, como quem ataca, com químicos infalíveis, insectos repelentes de spray na mão. Graffiters com nomes fofinhos como Quika ou Moxo deviam ser dizimados, simplesmente varridos de uma vez por todas das paredes da cidade. No entanto, passam dias, semanas, meses, e eles contrariam a vontade do Dr. Tinta. Mantêm-se firmes, proliferam, andam por aí a conspurcar muros, portões, paredes, edifícios ao abandono, ruínas. São o eco visual da indecência que assaltou toda uma comunidade.
Manda o bom senso, no entanto, separar o trigo do joio. Nem tudo o que é graffiti é mau. Por vezes, chega a ser arte. Noutras ocasiões, até se converte em literatura. Em 2011, o Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles dedicou atenção à chamada street art. O italiano BLU resolveu fazer uma gracinha. Pintou uma série de caixões cobertos por uma nota de um dólar, aludindo aos militares americanos mortos em combate. A audácia durou 24 horas. Rapidamente, onde antes existiam caixões cobertos por uma nota de um dólar passou a observar-se uma parede branca. BLU deu um passo a caminho da História, fez arte. Neste caso, o combate ao graffiti acabou não só por se mostrar contraproducente como de uma hipocrisia atroz. Afinal, a censura existia nos EUA.
Já em “O Livro dos Abraços”, o uruguaio Eduardo Galeano imortalizou graffitis que foi encontrando pelo caminho ao longo da vida. Do conjunto intitulado “Dizem as Paredes” destaco, pela acutilante actualidade, este: «Em Caracas, em tempos de crise, à entrada de um dos bairros mais pobres: / Bem-vinda, classe média». Isto é arte, isto é literatura. Não por acaso, o poeta brasileiro Paulo Leminski considerou “fenómeno poético” isso a que damos o nome de graffiti, palavra com “consistência de grito”. Procurem no YouTube.
Portanto, o Dr. Tinta está desculpado. O evidente fracasso do combate ao graffiti pode ter explicação em hesitações estéticas. A mesma desculpa, porém, não pode ter Hugo Oliveira. Chamado a «pronunciar-se sobre acontecimentos da maior relevância que envolvem a cidade de Caldas da Rainha» (cito página pessoal do visado), garantiu a este jornal que existe na Câmara uma brigada anti-graffiti. «Quando identificamos graffitis, vamos e apagamos», disse. Não sei quem vai nem o que apagam, mas temo que apaguem tudo quanto é artístico. O lixo está há dias, semanas, meses, anos, inteiramente visível. O autarca acrescentou ainda: «Semanalmente eu próprio detecto muitos e comunico».
Semanalmente… Comunica, presumimos que à tal brigada, que viu algures um plagiador de Mr. Brainwash, um reles imitador de Banksy, um Shepard Fairey epiléptico, um Vhils atacado pela doença de Parkinson ou um Above entorpecido. Depois a brigada vai lá e apaga, deixando a nosso cuidado os extraordinários arabescos que adornam monumentos públicos, enfeitam muros de cemitérios, enriquecem paredes de museus, embelezam o Centro da Juventude…
Das duas uma, ou esta gente carece de consulta no oftalmologista ou simplesmente não anda a pé pela cidade. Pela parte que me toca, agradeço a generosidade. Quanto mais incompetentes se mostrarem no combate à poluição visual que tomou conta da fachada, maior será a esperança no advento de um Banksy made in Caldas. Mas eu moro num 3.º andar, à minha varanda ninguém chega.
Henrique Fialho
fialho.henrique@gmail.com

































