Hospital “regional” do Oeste: Uma escolha inteligente ou difícil?

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O hospital das Caldas já tem cerca de 60 anos

A escolha proposta da localização de um novo hospital para o Oeste é o exemplo académico do exercício da decisão pública em país que privilegia critérios retrospetivos, baseados em fórmulas e tendências do passado e de pressupostos assentes em continuidades conservadoras, pouco inovadoras e menos assentes nas necessidades do futuro em que o (um) Hospital vai funcionar.
Quem quiser discutir o tema, sem argumentos cínicos e sem ideias pré-concebidas, dificilmente pode aceitar processos de decisão com base em modelos matemáticos incidentalmente manipulados, que escondem razões objetivas e esquecem também a história e o enquadramento das instituições de saúde existentes.
Ser verdadeiro e objetivo é dizer que um investimento deste tipo de milhões de euros para um futuro incerto na área da saúde – quer em relação ao modelo societal ou institucional que virá a existir a médio prazo (20, 30 anos ou mais), quer aos conhecimentos científicos, tecnologias e metodologias de tratamento da saúde e da doença -, é estruturante e beneficia naturalmente a região onde vai ser feito e “prejudica” diretamente as regiões periféricas a esse investimento. Indiretamente todos podem beneficiar.
Contudo haverá razões e condições que podem sustentar essa escolha, devendo num sistema de contrapartidas e de perequação, atribuir a outros territórios investimentos compensatórios dentro de um modelo de sustentabilidade sistémica regional.
Nos países em que há regionalização inteligente, isto é feito pelos próprios habitantes, de forma equitativa, mesmo que, por vezes, haja controvérsias e polémicas, mas no quadro de uma distribuição global do investimento, solidificado pela decisão de representantes eleitos e validados pelo voto, minimizando as divisões.

Declaração de interesses
Como declaração de interesses, não escondo que vivo nas Caldas da Rainha, apesar de ter uma relação crítica com o modelo de “desenvolvimento” ou de crescimento seguido nas últimas décadas localmente, mas também regionalmente na putativa região do Oeste, que nunca se assumiu nem foi devidamente reconhecida desde o revolucionário estudo feito por uma equipa do Eng. Lopes Cardoso no âmbito da Fundação Gulbenkian feito há mais de meio século. (“A região a oeste da serra dos Candeeiros: estudo económico-agrícola dos concelhos de Alcobaça, Nazaré, Caldas da Rainha, Óbidos e Peniche”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian publicado em 1961 com Carlos da Silva e Alberto Alarcão)
Sei por outro lado e objetivamente, que a saída do atual hospital das Caldas da Rainha, poderá corresponder a uma perda de mais de três mil habitantes e de mil postos de trabalho diretos no mínimo, o que se torna impensável para qualquer decisor local.
Mas também sei que os investimentos públicos, mesmo com fundos vindos da União Europeia, são dinheiro dos contribuintes do país e da Europa, e que se forem errada ou inconvenientemente aplicados, terão um custo maior pelo desperdício, pela ineficiência, mesmo pelos custos da corrupção e de nepotismo, pequena e grande, mesmo que resulte apenas de traficância de influências.

O Oeste e a nova NUT 2
Em acréscimo a recente aprovação por Bruxelas da criação da NUT2 composta pelo Oeste, Lezíria e Médio Tejo põe a nu a incorreção – e no limite o verdadeiro “truque” que está por detrás do estudo já conhecido sobre a localização do futuro Hospital do Oeste.
De forma arbitrária e ao arrepio dos melhores critérios, somou-se, ao Oeste uma parte do concelho de Mafra, que não só pertence a outra NUT2 – e não pertence pois ao Oeste – como, na realidade, o que os habitantes pretendem é de serem assistidos nas unidades de Lisboa e Loures. Com este artifício, contrário ao desejo das populações e indo até contra o ordenamento comunitário que releva para a atribuição de fundos, usa-se de parcialidade e faz-se pender a opção “mais para o sul”. Uma verdadeira manipulação de que se desconhece a origem.
Só que agora “fia mais fino”. Uma das razões invocadas para a celebrada criação da nova NUT2 foi a melhor aplicação e justiça na distribuição dos fundos comunitários. Mas se vencesse esta manobra de pôr uma parte da população de outra NUT2 a ser abrangida e a “influenciar” a decisão sobre a localização, o caso poderia vir a ganhar os contornos de uma “fraude” ao ordenamento comunitário. E pergunta-se quem responde politicamente por este comportamento que mancha à partida a reputação de imparcialidade que se desejaria acompanhasse este empreendimento tão relevante.

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Metodologia para o investimento
Sei também que muito do investimento público feito ao longo dos anos no nosso país e na nossa região, e especialmente no período da ditadura, em que a transparência era reduzida e o debate democrático das ideias e decisões quase inexistente, pouco se respondeu a critérios científicos e viabilidade a prazo, transformando-se muitos deles em elefantes brancos, ou seja, em “algo cujo custo de manutenção não está de acordo com sua utilidade ou valor”.
O debate que se tem assistido no último quarto de século, ou mais, no Oeste sobre novas instituições hospitalares para cuidados básicos e diferenciados de nível não muito especializado, tem mostrado a forma pouco assertiva que tem sido feito, com a entrega a sucessivas instituições universitárias, que, sem grande cuidado científico, descobrem localizações num dia, que no outro são postas em causa por outros. Nalguns casos até parece que a proposta final foi feita a pedido e como base na oferta do terreno mais barato.
Como já o disse em síntese, o estudo já realizado encomendado pela CIMOeste é essencialmente simplificado a dois critérios pré-estabelecidos: população e distâncias, utilizando esquemática e simplistamente a oferta atual do sistema de saúde (público e privado), omitindo fronteiras e outras ofertas, dando como que o modelo do sistema hospitalar se vai eternizar e que não vai haver alteração da oferta público/privada e do financiamento da saúde, não avaliando as tendências pesadas da evolução populacional, etc., pelo menos.
Construiu-se um modelo da análise retrospetiva e não prospetiva, com soluções usadas e muitas delas ultrapassadas, que tecnológica e humanamente não satisfazem já hoje, quando mais para a próxima década e seguintes.

Decidir em tempo de incerteza
Numa escolha inteligente para um investimento substancial que terá a vida de muitos anos (de recordar que o atual hospital das Caldas da Rainha já tem cerca de 60 anos de vida e nunca conseguiu antecipar a evolução das variáveis que o determinaram, sendo sempre caraterizado pela falta de capacidade, condições, equipamentos, pessoal, etc,) haverá que tentar usar a incerteza para determinar caminhos expectáveis para as futuras exigências.
O espetáculo recente que nos tem sido oferecido com a crise nas urgências de Obstetrícia e Ginecologia, que atingem pequenos e médios hospitais como os grandes e gigantes, tendo por origem as mesmas enzimas estruturais, representando uma crise que mereceu a necessidade de criação de um género de task-force estratégica ou de um comando operacional, sem militar estrelado, como experiência recente demonstrou ser valiosa e ganhadora. Tratou-se apenas da escolha do novo CEO do SNS, Dr. Fernando Araújo, estrelado pela sua liderança nos Serviços Hospitalares do Norte.

Análise “qualitativa” e “resiliente”
E uma das melhores ferramentas estratégicas, mas também democrática, que se usa para ajuda à decisão, chama-se de análise multicritério que, como diz um dos especialistas que nos habituámos a escutar (Michel Godet), “o mundo real é demasiado complexo para que se possa esperar, algum dia, pôr em equação o seu eventual determinismo escondido. E mesmo que o pudéssemos, a incerteza, inerente a todas as medidas, e nomeadamente as sociais, manteria sempre em aberto, pelo menos nos nossos espíritos, o leque dos futuros possíveis. Uma vez que o determinismo é indeterminável, importa “fazer como se” tudo estivesse em aberto, como se a revolta da vontade pudesse, só ela, abater a tirania do acaso e da necessidade.”
Num método multicritério, pretende-se avaliar diferentes ações ou soluções para um problema, em função de critérios e de políticas múltiplas, “para ajudar na decisão, construindo uma grelha de análise simples e evolutiva das diferentes ações ou soluções que se oferecem ao decisor.”
Estes métodos baseiam-se numa avaliação das ações através de uma média ponderada, depois de se fazer o recenseamento das ações possíveis, a análise das consequências e a elaboração de critérios, a avaliação das ações, a definição de políticas e a classificação de ações.
Uma política é um jogo de pesos atribuídos aos critérios, que traduz um destes contextos. Estes jogos de pesos de critérios poderão, assim, corresponder aos diferentes sistemas de valores dos atores da decisão, a opções estratégicas determinadas ou ainda a cenários múltiplos e às avaliações, incluindo o fator tempo. Na prática, para cada política, os peritos distribuem um dado peso pelo conjunto dos critérios, que resume as diferentes ponderações possíveis.

Modelos internacionais
Mas tão importante como estas questões devíamos ter em conta, num exercício de benchmarking, o que de melhor se está a fazer por esse mundo fora quanto a modelos de saúde.
Nem de propósito a revista Futuribles recente (nº 449, Julho/Agosto 2022, Paris) publica um trabalho realizado por três especialistas médicos franceses de alto nível, inspirando-se em várias experiências pioneiras internacionais de boas práticas de referência, nomeadamente da “Kaiser Permanente”, da Califórnia, do Sistema de Serviço Público inglês, do Gesundes Kinzigtal alemão, dos serviços responsáveis pela saúde nos Estado Unidos e no Intégreo belga.
Partindo de uma avaliação da OCDE de 2017 sobre os sistemas de saúde internacionais, concluem que 20% das despesas de saúde não têm qualquer impacto na qualidade da oferta de serviços, tendo mesmo impacto negativo. Isto é, os sistemas de saúde são baseados num modelo que visa tratar prioritariamente as situações agudas, conduzindo a uma alta dos custos e a maus resultados na saúde, bem como à insustentabilidade dos sistemas.
Para estes especialistas a integração das organizações de prestações de cuidados de saúde são simultaneamente mais eficazes e mais eficientes. Em suma, esta integração visa quatro objetivos simultâneos: o melhor acompanhamento dos pacientes, uma melhor saúde da população e da utilização dos recursos/minimização dos custos e uma melhoria da qualidade de vida no trabalho dos profissionais de saúde.
Segundo estes especialistas “todos os sistemas de saúde integrados fazem evoluir o foco das organizações, dos doentes caros e complexos para uma abordagem do conjunto da população. A concretização dos objetivos passa sistematicamente pela excelência clínica (bons serviços, satisfação das pessoas, tudo no momento certo) e as melhores práticas baseadas nas práticas comprovadas, com uma grande imbricação na primeira linha dos serviços (médicos generalistas, mas não apenas) e dos múltiplos parceiros que saem do campo sanitário tradicional. A “protocolização” dos percursos torna-se necessária para assegurar um elevado nível dos cuidados de saúde, da prevenção até aos pacientes com doenças mais complexas. Sistemas de informação performativos são indispensáveis, permitindo um seguimento da população e das trajetórias individuais. Geralmente, o modelo financeiro recompensa os comportamentos virtuosos e financeiros da coordenação.”

Nós e o Resto do Mundo
Esta apreciação das boas práticas internacionais, demonstra muito do anacronismo das discussões políticas nacionais e regionais do modelo dos cuidados de saúde, e provavelmente o quanto caminho das pedras temos de percorrer até beneficiarmos de um sistema de saúde verdadeiramente significativo para servir eficazmente os portugueses.
Isto não invalida o papel e a importância do provável futuro hospital regional do Oeste, mas implica antes perceber e construir o modelo de interações entre os vários sistemas de saúde na vertical, ou seja, a montante e a jusante dos hospitais mais especializados às organizações de cuidados básicos, bem como a interligação horizontal entre sistemas, públicos, privados e associativos, combinando os financiamentos para minimizar custos e tornando todo o sistema mais eficiente.
Sei que este é o discurso mais complexo e desmotivador, pois invalida os benefícios de curto prazo que alguns perseguem, esquecendo que sistemicamente estão todos a perder e caminhamos para uma rutura a prazo do sistema global. A não ser que tudo isto apenas sirva para justificar os adiamentos das decisões finais… ■

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