Fare La Spesa

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Conceição Henriques

A passo estugado, a cidade atravessa-se em 10 minutos, em qualquer direcção.
Saio de casa cedo, com destino à praça. À minha passagem, um gato preto assanha-se fazendo levantar um bando de andorinhas, tudo sob o olhar atento de um padre de batina, numa cena de fábula de La Fontaine.
Cumprimento o relojoeiro, o padeiro e a rapariga da farmácia e atiro um olhar e um bom dia para dentro do Beco.
Nas esplanadas, há gente que lê o jornal e conversa e acena a quem passa; no ar, perfume de frísias e compassos de acordeão.
Sorrio.
Ao longe, onde a rua acaba, já adivinho a paleta impressionista de legumes, flores e frutos e atraso um pouco o passo para ver, nas montras, as novidades a que hoje se chama, pomposamente, ‘as novas tendências’. Faço contas à vida: daqui a nada, vai estar tudo a metade do preço!
E sigo.
No fundo da minha cesta, convivem agora, radiantes maçãs e brócolos, laranjas e alfaces, batatas-doces e funcho, cenouras e damascos, azeitonas e morangos, cuidadosamente sobrepostos por camadas, em rigorosa ordem de firmeza, enquanto vendeiras e fregueses vão debitando as horas matinais, sob o olhar vazio de Pégaso, prestes a lançar-se em voo imóvel sobre o tabuleiro da Praça, desde que tenho memória. Há uma inebriante patina de luz no ar.
Seguindo o exemplo de dois veneráveis Antónios, volto-me da terra ao mar, ainda a tempo de fisgar dois peixes para pratear a cesta.
Não chego ao Parque, mas sei que o pintor ainda lá se encontra, imponente e sereno, de olhar fixo, com paleta numa mão e pincel na outra, a ensaiar uma imagem para a eternidade, o caramanchão há-de estar já em flor, por estes dias, com o seu impertinente cheiro a lilases a invocar imagens de crianças e bicicletas, e, no lago, os barcos prosseguem a sua rota circular e perpétua perante o olhar esgazeado dos cisnes.
Regresso.
O sol já vai alto, mas o meu passo, teimoso, suspende-se, uma e outra vez, ignorando as urgências do estômago. Vejo sorrisos que sobem das chávenas de café vazias sobre as mesas, até se prenderem distraidamente nos rostos dos clientes.
O tempo retarda-se e eu agradeço-lhe essa gentileza que ainda me vai permitir dois dedos de conversa e um brinde à semana que acaba antes de regressar a casa.
Se eu fosse crente, haveria de rezar: Senhor Deus Pai, fazei com que a tempestade da guerra jamais se abata sobre esta cidade a que chamo minha.

Conceição Henriques
couto.henriques@gmail.com

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