Estrada de Macadame – CCXXVIII – «Já tenho mais anos de Lisboa do que da minha terra»

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No tempo da «estrada de macadame» Lisboa começou por ser apenas um ponto de passagem. Fomos viver para o Montijo em 1957 e apanhávamos o vapor dali até Lisboa, atravessávamos a pé a Rua do Ouro (que se chama Rua Áurea) e seguíamos até às Caldas da Rainha no comboio das cinco e vinte que chegava ao destino às sete e vinte. Vim para cá viver em 1966 com quinze anos mas já gostava da cidade: sinaleiros, varinas, carros de praça, ardinas apregoando jornais, eléctricos com atrelado, autocarros de dois andares e, sobre tudo isto, a famosa luz de Lisboa que fascina todos os realizadores de cinema. Ainda tentei trabalhar e estudar à noite ao mesmo tempo, ainda frequentei as escolas Veiga Beirão e a Patrício Prazeres mas cedo percebi a impossibilidade de fazer as duas coisas.

Saía muito cansado do trabalho no BPA e comecei a interessar-me por livros e cinema. Um grupo de colegas do Banco juntava-se na Parceria A. M. Pereira na Rua Augusta com escritores: Romeu Correia, Luiz Pacheco, José Palla e Carmo, Natália Correia. A Livraria era uma tertúlia: fui apresentado a Ruben A. para quem José Palla e Carmo tinha escrito o fabuloso prefácio em «A Torre da Barbela». Dessas conversas nasceu o meu interesse por uma autora até aí desconhecida – Irene Lisboa. Primeiro sugeriram a leitura dos seus fascículos com o nome de Adelina. Depois o livreiro Carlos Silva sugeriu-me «Esta cidade!». Aconselho este livro a quem queira conhecer a cidade de Lisboa. Fixem este título, hoje publicado pela Editora Presença. Este livro é de 1942 e marca o fim do pseudónimo João Falco. A proximidade entre texto e facto surge na página 97: «aquele retrato escapado do naufrágio ou do tempo atestaria sempre uma era: 1938, 1939, 40». Irene Lisboa usa o retrato de Adelina para contar a cidade: «Devia ter sido bonita e ainda era engraçada. A vida da Adelina interessa-me tal como é afinal e não pelo que de empolgante ou de propício a romance possa em si conter». Mas a cidade também é personagem: «Há quem julgue que a monotonia da cidade, a de escrever cartas e ofícios, dar lições, apanhar lugar sentado nos carros, ouvir pregões, ver caras parecidas, embota os sentidos. Mas não!» Lisboa tem a sua paisagem: «A minha rua não é feia, tinha-me dito a Adelina um dia. E não era, dava uma bonita volta em cima, onde se avistava Monsanto de esguelha. Realmente, aquela pobreza dos lados da Rua da Cruz era muito mais sórdida que esta das Necessidades». E tem o seu povoamento – refugiados e saloios, por exemplo. Helma, que foi para o Brasil («Era uma intelectual inocente e inteligente») e o saloio «que só enquanto vendeu bacalhau podre é que viu dinheiro!». Sem esquecer os conflitos, os da vida da Adelina («a mim serviu-me de muito ser arrecebida…Fiquei com uma filha nos braços e um tostão na gaveta da cozinha») mas também os da Escola – «Cada rapaz que não saiba a lição paga uma multa de berlindes para ela não ter de os comprar para o filho». Há uma inesquecível menina que vai a pé do Arco Carvalhão à Rua da Atalaia: «a minha mãe gostava muito de ter uma casinha…temos só um quarto e sem janela. Ela tem um câncaro no nariz». Entre o pitoresco da rua («Os eléctricos parece que entram pelas lojas dentro») e o tempo da II Guerra («O pãozinho está muito escasso e anda por aí muito braço caído») a eterna questão da linguagem: «A linguagem é uma terrível fixadora de modas! Chega porém a envelhecer com elas, a criar bafio…É um espelho com a propriedade de conservar as imagens que um dia reflecte mas que de repente apetece atirar fora, pôr de banda…»

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