Estrada de Macadame – CCXXI – «Em 1961 os campinos não usavam telemóvel»

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Olho emocionado para uma fotografia da rua principal de Vila Franca de Xira e esta foto sem autor sugere a data de 1961. Ou talvez 1962, quando o Tóino vinha de quinze em quinze dias da Lezíria receber o avio da mãe e deixar a roupa para lavar no poço da casa no Bairro do Bom Retiro. A água desse poço era salobra como a da fonte do bairro do Mártir Santo e os seus irmãos (Manel e Marcolina) iam com os vizinhos buscar água para beber nas bilhas de barro à fonte de Santa Sofia. Era o tempo da «estrada de macadame».
Nesse ano Salazar tinha gritado «Para Angola rapidamente e em força!» depois de antes ter agradecido «Obrigado portugueses, temos o Santa Maria connosco!», isto em pleno esforço repressivo com o quadrado da infâmia: Aljube, Caxias, Peniche, Tarrafal.
No Bairro do Bom Retiro, perto do Colégio Sousa Martins, os homens faziam horas frente à televisão no café do senhor Jorge a ver o Benfica e o Sporting nas vitórias europeias – Berna, Amesterdão, Antuérpia. Outros jogavam à malha no terreno anexo, havia sempre espectadores atentos no primeiro balcão. As mulheres, por sua vez, já pensavam na chamada guerra do Ultramar, começada em 1961. Mostravam o exemplo dos campinos e dos rapazes do Parque de Alverca, o outro nome das OGMA. Quem tivesse um sargento conhecido podia aspirar a uma cunha para um filho entrar no Parque. Podia ser um cabo desde que tivesse influência. Diziam entre si, as mulheres do Bairro: «Quem não tem padrinhos morre moiro!». Hoje os campinos usam telemóvel para avisarem da descoberta de um toiro tresmalhado nos confins da Lezíria. Se em 1961 nos viessem dizer, ao Tóino e aos miúdos do Bom Retiro, que uma caixinha de plástico nos punha a falar com o Mundo, todos nós teríamos dito: «Pode lá ser!». Mas afinal podia ser. Em 1961 os campinos não usavam telemóvel.
Mais tarde vim a saber que um amigo que muito prezo (Joaquim Nascimento) fez a guerra no Norte de Moçambique, escreveu um livro sobre a experiência e teve alguns campinos como companheiros de pelotão. Isso prova que a vida é feita de mentiras e de verdades. Sempre acreditei que aquilo que as mulheres diziam no Bom Retiro era verdade. Tinha a sua lógica: se os campinos faziam falta, era natural que a Companhia das Lezírias ou as outras grandes casas agrícolas movessem as suas influências para «livrar» os miúdos da tropa. Para as mães os filhos são miúdos e são sempre miúdos, são sempre pequeninos mesmo quando crescem. As pessoas de Vila Franca iam de comboio até Alverca e procuravam, através de contactos anteriores, chegar á fala com a pessoa certa para «meter» o rapaz lá dentro do Parque. Eram seis anos mas a mobilização ficava completamente posta de parte.
Eu fiquei excluído à partida dessas duas hipóteses: nunca pensei ser campino e empregado das OGMA de Alverca também não. Para campino faltava-me tudo e para serralheiro do Parque da Força Aérea faltava-me a profissão. Destinado desde os dez anos ao Curso Geral do Comércio, não sabia a diferença entre uma chave-inglesa e um parafuso, entre uma porca e um rebite. O meu mundo já era feito de juros e letras descontadas, deve e haver, diário e razão, balanço e balancete rectificado.
A estrada para Santa Sofia era também de macadame. Era lá, à célebre fonte, que íamos buscar em bilhas e em garrafões a água para beber. O Bairro do Bom Retiro tinha torneiras mas a pressão da água era insuficiente para ela nos saltar na cozinha e na casa de banho. Por isso vinha o Zé da Água com um depósito da Câmara Municipal mas vinha sempre à hora de almoço para arreliar as mulheres que queriam ouvir o romance do Rádio Clube Português.

José do Carmo Francisco

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