Este Consumo Que Nos Consome – O GRANDE BLUFF CHINÊS

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Um livro contra a corrente de louvores sobre a China

A China tornou-se num acontecimento de comunicação global, abarcando, em permanência, as dimensões política, financeira e social, por razões compreensíveis os media nunca a retiram das luzes da ribalta. Se sobem os preços dos combustíveis, a economia chinesa é uma das razões; se há desemprego e encerramento das fábricas de têxteis na Europa, a culpa é da China; todas as previsões apontam para uma mudança radical a favor da China nos próximos 20 anos, que se tornará, vaticina-se, na fábrica mundial e se constituirá como superpotência. São louvores, assombros, temores, oriundos de todos os continentes.
A China é também um acontecimento editorial, toda a gente parece interessada em escrever para interpretar o fenómeno chinês, vai-se a uma livraria e há sempre cinco, seis títulos disponíveis a analisar os porquês do seu “milagre económico” e a revolução que produzirá à escala mundial. Um desses títulos, “O Grande Bluff Chinês, como Pequim nos vende a sua revolução capitalista” atraiu-me imediatamente pela provocação que encerra. O seu autor, Thierry Wolton, contrariando a vox populi diz mesmo que o futuro do mundo não está nas mãos da China, ela é um dragão de papel, mil famílias comunistas continuam a governar o país, as liberdades são inexistentes, o “milagre económico” assenta na pirataria, na contrafacção e no made in China de pacotilha, e quanto à prosperidade as exclusões serão ainda mais gritantes que as das sociedades capitalistas. Fui logo ler. É sobre esta perspectiva insolente que vos venho dar conta (“O Grande Bluff Chinês”, de Thierry Wolton, Editorial Bizâncio, 2008).

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Thierry Wolton escreve logo na introdução: “De todas as formas de abordar a China, a mais comum, nos últimos tempos, é a atitude de admiração. Este livro propõe-se procurar, para lá dos discursos oficiais, das curvas de crescimento lisonjeiras e das estupefacções variadas, uma outra realidade chinesa, que não é a geralmente descrita. Para o conseguir, dois métodos eram viáveis: a viagem de estudo, com o risco de não ser possível ver nem mais nem melhor do que os milhões de visitantes que ali se deslocam, ou a imersão numa literatura abundante, para dela extrair todas as linhas de força, como umas contradições. Esta segunda opção foi a adoptada”. E, de facto, o autor cita abundantemente, bibliografia é o que não lhe falta. Enquadrando a questão da notoriedade chinesa, Wolton recorda que o Império do Meio tem uma longa história em saber apresentar-se, sabe provocar uma admiração devota e atrelar todos aqueles que se fascinam por uma civilização, uma cultura e um passado diferentes do nosso: “Pertencer a uma civilização cinco vezes milenar confere-lhe uma espécie de confiança, o sentimento de existir à parte… Os ideogramas que representam ideias, mais do que os sons, são os mesmos desde sempre, e mantêm por isso uma ligação viva com a História. A ausência de tempos gramaticais, com verbos que exprimem indiferentemente o passado, o presente ou o futuro, alimenta a fusão entre ontem, hoje e amanhã, o que pode dar aos chineses uma ilusão de eternidade”.

Como estamos condicionados acerca do milagre chinês

Os media cultivam o assombro, o potencial chinês parece superar todos os recordes: maior produtor agrícola do mundo; maior produtor e consumidor de carvão e aço; maior produtor de alumínio e tungsténio; segundo maior produtor e consumidor de electricidade; maior construtor de auto-estradas, caminhos-de-ferro, centrais eléctricas e casas; maior consumidor de cimento; maior fabricante de sapatos, televisores e computadores portáteis; terceiro maior fabricante de veículos automóveis… O maior entre os maiores, a grande oficina do mundo, onde as fabricam 85% dos tractores, 75% dos relógios de sala e de pulso, 70% dos brinquedos, 55% das máquinas fotográficas. Tem sempre todas as previsões a seu favor: terá um Produto Interno Bruto superior ao da Alemanha a partir de 2010.
Os maiores elogios vêm dos cem milhões de chineses espalhados por todas as partidas do mundo. Mas os turistas também ficam deslumbrados com esta nova China, empreendedora e audaciosa. Para desmontar “O Grande Bluff”, Wolton examina as diferentes dimensões do fenómeno chinês. No campo político, é uma mascarada falar-se em democracia quando os dirigentes comunistas continuam a ser as figuras de primeiro plano em todos os escalões da administração, das colectividades locais, do mundo dos negócios e até nas empresas onde o Estado deixou de ser maioritário. É verdade que o partido comunista forjou no princípio do século XXI a teoria das “três representatividades”, pondo termo a um partido reservado somente aos camponeses, operários e soldados da era maoista. Na prática está tudo como dantes: mil famílias governam a China, dentro de cada clã distribuem-se lugares de pais para filhos em todos os ramos da actividade económica. A China continua sem nenhuma classe média, tem é uma classe de novos-ricos cujo poder de compra é determinado pelos comunistas. O regime totalitário permanece intocado: polícia secreta omnipresente, não existe liberdade sindical ou qualquer liberdade de expressão, o poder instalou uma Intranet à escala do país que permite isolar os internautas chineses do resto do mundo. Este o bluff político. Quanto às mentiras económicas, elas são toleradas e aceites pelos poderosos clientes, pelos dirigentes das multinacionais, por todos aqueles que investem na China: o país continua a pertencer ao terceiro mundo, a pirataria e contrafacção são práticas correntes das empresas chinesas, o sector bancário está altamente endividado e dependente dos investidores estrangeiros, a privatização da economia é permitida para enriquecer a nomenclatura do partido comunista. Os sucessos comerciais da China também têm muito fogo de vista: produção a baixo custo de qualidade medíocre, a vantagem competitiva dos produtos chineses está confinada à gama baixa, cerca de 60% do seu comércio externo é realizado por empresas de capitais estrangeiros, e destes 60% dois terços dos produtos são fabricados por empresas cujo o capital é integralmente estrangeiro. Em resumo, a China é uma oficina de montagem de peças high-tech importadas e de alguns componentes nacionais de baixo valor tecnológico. Não é o mundo que pode passar sem a China mas é a China que não pode passar sem o mundo. Quanto às disparidades sociais, é na China que elas são mais gritantes: ganha-se actualmente três vezes mais dinheiro na cidade do que no campo; os camponeses que representam 63% da população são responsáveis por apenas 34% do consumo total; vale a pena insistir que não há verdadeiramente propriedade privada mas sim uma elite que depende do estado partido; não é o empregador que remunera o trabalho mas o operário que tem de adiantar o montante para ter direito ao emprego.
Claro está que este bluff não vai durar toda a vida, a China não pode continuar a dizer-se pacifista e ser a maior amiga dos “estados malfeitores”, desde a Birmânia ao Zimbabué. Ao condenar-se a ser a oficina do mundo, o Império do Meio preparou um nó cego: vive desesperada com falta de energia e de matérias-primas, o essencial da riqueza que produz é preparada noutro sítio, tem uma bomba social ao retardador com o envelhecimento da população e a falta de uma segurança social. A China copia mas não inova, o seu número de patentes é insignificante, as catástrofes ecológicas, os perigos sanitários, a criminalidade galopante são indisfarçáveis. É verdade que foi também assim em Taiwan e na Coreia do Sul, países que viveram em regime ditatorial e evoluíram para democracias parlamentares com estado de direito. A China vai ter que optar num lapso de tempo muito curto mas uma coisa é certa: o futuro da China é o futuro do mundo mas nós temos que tomar consciência que ela é um dragão de papel mas que se souber fazer chantagem nos pode atirar a todos para uma crise desastrosa. Bom seria que tivéssemos consciência do bluff e apoiássemos ali a emergência de uma verdadeira democracia.

Beja Santos

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