Este consumo que nos consome

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As últimas duas décadas da vida portuguesa

da adesão à Comunidade Europeia até à actualidade

António José Telo, professor com vasta obra no campo da História, Defesa e Relações Internacionais, afoitou-se a analisar a História Contemporânea de Portugal e o primeiro volume dedicado ao período entre o 25 de Abril e o fim do Bloco Central, em 1985, mostrou tratar-se de uma obra de fôlego, didacticamente estimulante e com uma comunicação ousada, adequada ao grande público mas sem concessões a simplismos ou quebras de rigor.

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O segundo volume, recentemente surgido, comprova que António José Telo continua bem sucedido nesta arriscada incursão pelo quase presente e pela agitação de factos ainda susceptíveis de alguma rectificação e novos e abrangentes olhares (“História Contemporânea de Portugal, do 25 de Abril à actualidade”, por António José Telo, Editorial Presença, 2008).

Ascensão e queda do cavaquismo

Cavaco Silva não é um ilustre desconhecido quando ganhou o congresso da Figueira da Foz, é um professor e economista experiente, conhece perfeitamente os dossiês que Portugal subscreveu para aderir à Comunidade Europeia, pretende governar com o PSD sozinho. É um tímido, fala com dificuldade mas convence as pessoas, na direita e no centro. Dá uma imagem de sinceridade, está convicto da modernização de Portugal, promete desenvolvimento e pôr a nossa economia próxima dos níveis europeus. Ganha eleições para o governo, perde as presidenciais, Cavaco e Mário Soares vão formar durante dez anos uma dupla que a prazo tem sérias repercussões no realinhamento partidário. Por exemplo, o CDS ficou a partir daí em permanente contorcionismo como aliado menor do PSD ou como um partido instável entre o populismo eurocéptico e um partido de regime que diz publicamente ter preocupações sociais. O PCP vê partir o seu líder histórico e assiste desconfortado à emergência de um período dourado da economia portuguesa, assiste à consolidação da economia de mercado que sempre abominou mas já não tem meios para recusar, vendo, impotente, adensar-se o tecido das classes médias. O PRD, uma mera emanação de Eanes, é um fogo-fátuo, corresponde a um protesto não só do eleitorado convencional do PS como de alguns dos seus quadros. Com o fim da crise do Bloco Central e a eleição de Mário Soares, o discurso do PRD torna-se impróprio para consumo, o partido mostra-se irrelevante e um belo dia desapareceu. O PS vive horas difíceis a partir da eleição de Vítor Constâncio e outros líderes, incapazes de ofuscar a dinâmica do cavaquismo. A hora de Guterres ainda não tinha chegado.

Cavaco Silva começa por governar em minoria e só após a dissolução da Assembleia da República, em 1987, é que o PSD ganha com uma maioria expressiva acima dos 50%. António José Telo enuncia as seis características do cavaquismo: uma forma de fazer política entre os trabalhos árduos do líder e a ressonância que lhes é dada pelos media; o cavaquismo é a fulanização por excelência, tudo se apaga à sua volta, os gabinetes de comunicação mostram o chefe ao serviço do país; o cavaquismo é a centralização do poder tanto em termos de Estado como de partido; o partido apaga-se perante o Executivo e perde importância como correia de transmissão de ligação à sociedade – é a governamentalização da vida partidária; na sua fase ascendente, o cavaquismo tem a capacidade de mobilizar sectores de opinião e públicos que normalmente escapam à máquina do PSD; o cavaquismo é um discurso nacional formulado e expresso como uma não ideologia, é o servir a pátria sem paixões partidárias, absorvido pela modernização e pela integração europeia. Com a argúcia que lhe é peculiar, Soares embarca nesta onda, cria as presidências abertas, transforma-se no mediador privilegiado entre as massas insatisfeitas e o Governo que tudo promete resolver. Iniciava-se um ciclo de reformas estruturais que levaram ao apagamento do gonçalvismo, à reforma da estrutura económica e financeira da sociedade, à consolidação do Estado Providência, ao primeiro ciclo de reformas da Defesa e da Segurança, a um novo tempo de relações internacionais. Em 1991, Mário Soares é reeleito com mais de 70%, Cavaco só se preocupa com a estabilidade para garantir o desenvolvimento. Nesse mesmo ano, o PSD volta a ganhar as eleições com mais de 50%. Guterres começa a sobressair com o esgotamento do cavaquismo: não é acintoso, reinstala a dimensão cultural no discurso político e começa a convencer uma sociedade cansada com excessiva governamentalização em que as clivagens dentro do PSD ganharam ressonância pública. No início de 1995, Cavaco confirma que não será candidato à chefia do PSD, é a partir deste momento, dada a falta de figuras de primeiro plano dentro do partido do Governo, que os olhares se põem sobre a mensagem refrescada de Guterres. Em Outubro desse ano o PSD é afastado da governação. Fazendo um balanço desses anos, diz o autor que a obra reformadora de Cavaco é um dos grandes acontecimentos do século XX em Portugal, ficou muito incompleta e não é exagero dizer-se que José Sócrates trabalho no encalço de completar essas reformas, sempre na miragem do grande salto da modernização e do desenvolvimento.

Os tempos da maioria rosa, o seu colapso, as peripécias seguintes

Guterres traz novas mensagens: fala no modelo irlandês de desenvolvimento, aposta na melhoria da qualidade da educação, anuncia o reforço do modelo de solidariedade social. No início ainda havia prosperidade mas o desafio de Portugal entrar no Euro( moeda única) exigiu desde cedo ao controlo dos défices orçamentais. Em 1996, Jorge Sampaio é eleito presidente. Guterres não só tem um discurso novo como soube captar múltiplos independentes alguns dos quais se irão tornar alguns dos seus principais conselheiros. A máquina partidária do PS também se apaga e Guterres parece acolher uma corte de pequenos grupos onde pontificam um franciscano e um ex-dissidente do PCP. O PCP é confrontado com a decadência e da implosão da URSS, assiste-se à reconstituição do espectro político à sua esquerda e assim irá surgir o bloco de esquerda. Manuel Monteiro parece trazer dinâmica ao recém-formado PP mas, dada a incomodidade do seu discurso vir envolto do liberalismo, revelou-se desajustado face ao PSD. Quanto ao PSD, entrou num novo ciclo de confrontos internos até à liderança de Durão Barroso.

A queda do poder rosa prende-se igualmente  com o agravamento da situação económica internacional. Ainda se tentou mascarar a dívida pública mas a situação das contas públicas começa-se a agravar-se em 2002. Como escreve o autor, a imagem de Guterres sofre com a depressão económica e algumas das suas características que antes eram muito apreciadas, como a capacidade de diálogo e a flexibilidade, passam agora a ser encaradas como sinal de fraqueza. As autárquicas de fins de 2001 são o grande sinal do esgotamento do guterrismo, a sua estratégia chegara a um beco sem saída, com a agravante de um buraco financeiro se ter tornado medonho. Para António José Telo, o executivo inicial de Guterres não entendeu Portugal em 1996 precisava no essencial de complementar as reformas de fundo de Cavaco. O aumento das despesas públicas de Guterres contribuiu para um alargamento da solidariedade social e também para um aumento das despesas na Educação e na Saúde. Mas o país ficou mal equipado para enfrentar a crise que deflagrou em 2001. A Saúde, por exemplo, revelou-se incapaz de dar um pulo qualitativo.

Após a demissão de Guterres, realizaram-se eleições em Março de 2002 e o PSD ganhou com pouco mais de 40%, tendo feito alianças com o CDS/PP. É um programa de Governo defensivo, uma experiência singular na vida do PSD, habituado a governar na crista da onda. Iniciava-se um novo período de austeridade que não foi bem comunicado à população. O primeiro grande sinal de instabilidade é dado pelas eleições para o Parlamento Europeu, de Junho de 2004 em que o PS tem uma vitória significativa. Logo a seguir aparece a candidatura de Durão Barroso à Presidência da Comissão Europeia e Pedro Santana Lopes é nomeado primeiro ministro. É um executivo igualmente singular: o Governo de Santana Lopes fica na completa dependência do Presidente da República, é um tempo de governação com muita comunicação desencontrada, muito bruá, incidentes, acusações,contradições, e um discurso muito próprio de Santana Lopes que é permanentemente demolido nos jornais. A demissão de Ferro Rodrigues, do PS, que se insurgira pela nomeação de Santana Lopes leva à chegada em Março de 2005 do Executivo liderado por José Sócrates. Este, durante a campanha, propõe novos desafios, com destaque para o plano tecnológico, a qualificação da democracia, o desenvolvimento sustentável e a afirmação de Portugal no mundo. O espantalho do défice, no entanto, tomou conta das prioridades da governação: um rigoroso programa de saneamento financeiro é anunciado, com aumento de receitas e contenção de despesas. António José Telo opta, compreensivamente, por não fazer uma avaliação do actual Executivo, mas reconhece que Sócrates procura em certas áreas+ concluir a obra de reforma inacabada dos governos cavaquistas. Segue-se uma leitura sobre as diferentes fases por que passou a III República: a via socialista ou a transição para o socialismo; construção de um novo sistema em que o cavaquismo teve uma posição fulcral; e uma terceira fase ainda inacabada em que não se vislumbra facilmente qual é o modelo que irá emergir do quadro de crise e de relativa estagnação em que vivemos. Igualmente o autor debruça-se sobre a rigidez dos partidos e o aparecimento de grupos de cidadãos e de novas formas de democracia participativa.

Portugal e o mundo

António José Telo procede a uma leitura minuciosa sobre as relações externas de Portugal depois do 25 de Abril. A descolonização foi o eixo central da primeira fase, sujeita a múltiplos factores onde não é descabido falar da fase evoluída da guerra na Guiné até ao quase apagamento da Guerra em Angola, com as pressões da guerra fria, os múltiplos interesses internacionais à volta de Angola, como, em menor escala, á volta de Moçambique. Igualmente são analisadas as influências dos EUA, da URSS, da Espanha e da Europa no seu todo. Em 1977, começa o processo de adesão à CEE, sinuoso, nem sempre bem negociado mas coroado de êxito em 1985. A dupla Cavaco Soares revelou-se também estimulante na abertura da frente das relações internacionais a outros países, quer no quadro Atlântico, quer na premonição da internacionalização da nossa economia, pensando-se na China, no Brasil e no Leste Europeu.

O último capítulo da obra tem a ver com as promessas por realizar no campo económico e porventura constitui o pilar da leitura do autor procurar ampliar ao período da governação de Sócrates. É um olhar sobre o fio condutor da política económica do cavaquismo e do modo como se procurou atrelar o nosso destino na integração europeia. É um balanço das reformas de Cavaco que ninguém pode ignorar, quer pela extensão quer pelo desígnio. Igualmente é importante o olhar sobre a economia do guterrismo e dos seus constrangimentos em saber responder devido às dificuldades estruturais. O autor recorda algumas das reformas de Sócrates como o PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Pública) que parecia ser a grande reforma da administração depois da de Mouzinho da Silveira.

Esta, em síntese, a obra de análise a que se aventurou António José Telo. Pelo seu fôlego, pela quantidade de dimensões analisadas, pelo rigor dos juízos emitidos, não é temerário vaticinar a importância que estes dois volumes virão a ter na bibliografia obrigatória  da História Contemporânea de Portugal.

Beja Santos

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