Um destes dias fui convidado para um casamento que se realizou em Vila Franca do Rosário, numa quinta preparada para o efeito. Tão preparada que se vê uma jovem de calções e T-Shirt entrar por uma porta e depois sair por outra porta já transformada numa noiva esplendorosa com um vestido branco de longa cauda.
Mas o que me levou a recordar a «estrada de macadame» não foi (nem podia ser) a noiva e o seu vestido branco. Foram umas sardinhas assadas que integravam com galhardia o menu do banquete. Por entre as entradas mais apetitosas, a fruta mais fresca e os doces mais irresistíveis, lá estavam as sardinhas. Por entre o lombo de bacalhau lascado com broa, a entrecôte com molho madeira e o crumble de maçã com gelado de baunilha e canela, lá estavam as sardinhas. Modestas, discretas, sóbrias mas eficientes na alimentação dos homens como no tempo da «estrada de macadame».
Nos intervalos das mulheres da Nazaré que vinham a pé e dos Cesários de Peniche que vinham de camioneta, aparecia o Engenho com o seu macho. Uma canastra de cada lado do macho e ele no meio a fazer os trocos, depois a corneta a anunciar o peixe e estava montado o estaminé. Nunca lhe soube o nome civil e agora já é tarde. Engenho era a alcunha que derivava das suas brincadeiras com o macho a quem chamava engenho. Anda lá engenho! – gritava ele, depois de se despachar das freguesas. Ora a palavra engenho pode ter vários significados. Pode ser um «aparelho, máquina ou maquinismo, armação» mas também pode ser «astúcia, ardil, estratagema».
Homem muito dado ao humor, ouvi-o muitas vezes comentar a passagem de uma mulher pequena à beira da estrada com uma observação certeira: Esta mulher parece a rolha do tanque! Ora naquele tempo os tanques para lavar a roupa representavam um avanço em relação à ida à ribeira mais próxima. Era como ir à ribeira sem sair de casa e sem precisar de ter uma pedra exclusiva. Se ele chamava engenho ao macho, a razão estava talvez no facto de se tratar de um animal híbrido. Num certo sentido o macho é um mulato, um ser entre dois mundos que a nenhum pertence e que, pelos dois é repelido. Para muitos negros o mulato é como o morcego: nem é rato nem é pássaro. O pássaro olha o morcego e ao rejeitar a sua presença manda-o para os ratos. O rato ao rejeitar por sua vez o morcego manda-o para os pássaros. Ninguém o aceita. O substantivo mulato vem da palavra mula. Em África esperou-se com calma que o primeiro mulato não fosse estéril. Foi Valentim Fernandes, tipógrafo em Lisboa e cronista em São Tomé e Príncipe no século XVI, que utilizou essa palavra pela primeira vez. Da situação social do mulato nasceu o cabrito e o cafuso. Os textos de Valentim Fernandes foram reeditados em 1940, no ano da Exposição do Mundo Português e dos centenários – 1140, 1640.
Mas voltemos às sardinhas. Hoje não sei como fazem mas no tempo da «estrada de macadame» as sardinhas que sobejavam de uma refeição não se deitavam fora; aliás, nada se deitava fora. Como as mulheres donas de casa coziam pão no forno pelo menos uma vez por semana, as sardinhas eram aproveitadas para fazer «testemunhas». Descascadas da pele e livres das espinhas, as belas sardinhas do Engenho eram misturadas com a massa do pão (ora de milho, ora de trigo) e entravam nas saborosas «brindeiras». Uma brindeira com testemunhas e um bom copo de vinho, bebido na sombra da adega da casa ou na sombra de uma árvore na fazenda onde se trabalhava toda a tarde até ao pôr-do-sol, era uma magnífica merenda. À noite um bom prato de «misturadas» e um bocado de pão faziam a ceia. Sim porque «quem se deita sem ceia toda a noite esperneia». E a gente na minha casa não queria dar razão ao ditado.
PS – O senhor vendia pão em vez de sardinhas mas para mim é esta a memória.
































