Espaço Saúde – Partidas…

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Já aqui escrevemos tantas vezes que na boca começa toda uma vida. Entre o falar , o rir, por vezes aparecem as raivas e as lágrimas. É que da boca aos olhos é um pulo até ao coração.

Às vezes é de boca aberta que vemos partir aqueles que gostamos, ficamos com vontade de anular o silêncio e os sorrisos inclinam-se para dentro. Perdemos a monotonia dos desencontros e as memórias dos encantos, as aflições desperdiçadas e os adjectivos que nunca usámos. As bocas, por momentos, não dizem nada, recuam no tempo, até ao dia em que ficámos sem palavras quando nos olhámos pela primeira vez.
Houve um tempo em que acreditávamos nos heróis, nos super-homens, fantasmas e capitães… Na realidade, cruzámo-nos tantas vezes com eles sob um céu azul, que os dias ficaram banais, mas, sempre houve um minuto para as palavras. Da sua boca saiu a minha história e foi com ela que reconstruímos as infâncias futuras.
Ao ver o que ficou desse tempo, escrevemos todos uma vida, escrevemos as horas que contam e os minutos em que fomos felizes. Uns perdem-se no enroscado das escritas, não conseguindo libertar-se da falta de palavras que não foram ditas, outros ficam para sempre. Gosto de ouvir os amigos dizer, que a racionalidade é um dom, se calhar mais do que um dom, é o resultado de labirintos descobertos, dos abraços dados, das verdadeiras palavras ditas, as enormes, uma espécie de realidade construída entre bancos de jardins e lojas maravilhosas.
Hoje o dia está mais cinzento, tal como à um ano, há dois, há três, há quatro anos, enfim, todos os dias partem pessoas que nos deixam ficar de boca aberta de espanto e saudade. É  esta a razão da banalidade da vida, e é esta chuva que se mistura com o sol que nos leva os tempos e as memorias, e por vezes os pais.
Nunca me apeteceu esta troca nem me parece justa, mas não podemos parar nesta paragem e desistir do jogo, estamos biologicamente envolvidos e filosoficamente enganados.
O meu pai um dia apagou a luz do quarto e contou-me uma história sobre a importância que eu tinha para ele. Sabes, disse ele, imagina um planeta sem sol, um lago sem peixes vermelhos (aqueles que tanto gostas), imagina um filme sem herói, não consegues pois não, é assim que eu imagino a vida sem ti…
Muito anos depois, durante algum tempo, achei que os pais não nos deviam deixar estas memorias. No entanto, a tua racionalidade ficou-me na gravada, imaginei uma estação de comboios com as suas chegadas e partidas, temos de concluir que essa é uma verdade, bem amarga… Se as coisas não fossem o que são, escrevia um amigo meu…
Nestas palavras não há lugar para o sorriso, mas quero acreditar que depois de amanhã já vai haver. Nas conversas que nos contaram, misturada com a raiva dos acasos infelizes, ouvimos histórias longínquas sobre a capacidade de ser justo e a infinita disponibilidade. No território dos deuses a isso chama-se imortalidade e  cria sempre um amanhã mais forte.
O circuito do tempo é um  palco imenso.  Imagino um cenário: há um local secreto com árvores que nascem  viradas a oeste, há o cheiro de sinfonias inteiras de mar, o solo de piano dos pássaros e tempo, todo o tempo do mundo…era esse o guião que o embalava. Gosto de imaginar que há sorrisos para além do arco-iris e que este grito surdo de saudade encontra um eco em forma de riso no outro lado da arriba…
Para o M…

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Mário Rui Araújo
mra@meo.pt

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