Espaço Saúde – FILHOS, PAIS e COISAS MAIS – A entrada na escola: um grande momento na vida das crianças!

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Não estamos a fabricar “cavalos de corrida” para qualquer “retoma económica”, mas sim a contribuir para o desenvolvimento de pessoas livres e felizes, assertivas e solidárias, que vivem uma vida própria e relacional nas futuras décadas…

Milhares de crianças entraram na escola primária pela primeira vez. Cerca de cento e vinte mil crianças estão nessas condições. São muitas. E são mais de duzentos mil pais entusiasmados, por um lado, apreensivos, pelo outro, mas sobretudo orgulhosos de os seus rebentos já estarem no chamado “ensino obrigatório”.

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A entrada na primeira classe (ou, como agora pomposamente se diz, o primeiro ano do primeiro ciclo do ensino básico) é um acontecimento extremamente importante na vida da criança. Deveremos dizer “felizardos!” ou “coitados!”? Devemos agradecer á evolução e á democracia estas crianças poderem frequentar a escola? Ou, pelo contrário, concluir que são menos felizes e que têm menos hipóteses de se realizar no conjunto, que são, de cidadãos, profissionais, pessoas e seres humanos?
A Escola coloca-nos problemas de consciência, filosóficos, conceptuais e práticos. Como tudo, aliás. Mas o que se sente é que questioná-la é quase um tabu. Os professores são intocáveis, dado que são “vítimas” do sistema, da colocação aleatória e desgovernada, dos ordenados baixos e de terem que “aturar os alunos” (como se ser professor não incluísse essa parte). Os alunos são “anjos” que podem fazer tudo o que querem, e os pais, esses “coitados”, andam stressados, com letras para pagar e por isso mesmo é que cumprem os seus deveres fiscais, para remeter para a escola a dura, terrível e cruel tarefa de “ensinar”. Escola aqui, casa ali, comunidade acolá. Aprender por aprender, ou antes, dar informação por dar informação. A única ligação que, frequentemente fica, entre a vida escolar e a vida real são os famosíssimos TPCs. Será que é assim? Que esperamos nós da escola, agora que cento e vinte mil “almas” vão começar uma via que, na melhor das hipóteses poderá durar nove anos, noutras a vida toda… existirá uma “escola ideal”? A que temos é suficientemente boa?

A idade de entrada na escola e a maturidade da criança

Comecemos por aqui: em Inglaterra, por exemplo, as crianças entram na escola primária aos cinco anos, enquanto nos países nórdicos essa entrada se faz aos sete. Portugal está no meio termo. Muito se discute sobre a idade mais adequada para a entrada no sistema escolar obrigatório, mas ainda não há conclusões definitivas. Claro que o melhor seria cada criança entrar quando se tivesse maturidade para tal – e a idade em que essa maturidade é suficiente difere muito de criança para criança, como aliás todo o desenvolvimento infantil. Sendo impossível avaliar essa idade individualmente, as leis e normas têm que estabelecer um padrão médio que sirva mais ou menos para todos. Por outro lado, o que o sistema de ensino cada vez mais terá que fazer é adaptar-se a cada criança e não apenas o contrário, ou seja, não deverão ser exclusivamente os miúdos a moldarem-se à Escola mas esta a compreender cada um e oferecer um sistema de ensino que atenda às características biológicas, psicológicas e sociais de cada um… no fim de contas, é a afirmação de que o ensino não deverá ser “massificante” mas sim específico. Seis anos (sem ser taxativo, e dependendo da criança em questão) parece ser uma boa idade para a entrada na escola, até porque há que ver o longo caminho que será percorrido e que não poderá acabar demasiado tarde devido aos problemas da futura entrada no mercado de trabalho. Custa pensar que aos seis anos se está a programar todo um futuro, mas a realidade dos factos é essa. E a ligação do sistema de ensino aos sistemas social, laboral, empregador e de lazer é essencial.

A mudança de ritmo e de responsabilidade

A entrada na escolaridade obrigatória é um passo enorme na vida da criança porque corresponde à passagem do “tempo de brincadeira” para o “tempo da aprendizagem”. Obviamente que as crianças já aprendem muita coisa antes da escola – até porque o ensino da “vida e das coisas” se faz constantemente, designadamente em casa e na comunidade -, e também o tempo passado na escola não é propriamente de “trabalhos forçados”, há tempo para jogar, brincar e divertir. Mais: o próprio processo de ensino/aprendizagem tem que ser feito, cada vez mais, de uma forma lúdica, ou seja, através de jogos e de um ambiente despreocupado e alegre. Mal de nós se formos exigir das crianças uma atitude séria e, perdoem-me a expressão, francamente “chata”!
No entanto, é bom que as crianças sintam que esta entrada lhes vai trazer maiores responsabilidades. É bom que aprendam e saibam que a vida é uma relação de cooperação, o que implica trocas de serviços e um “negócio” bom para todos. É preciso também que se habituem a que os seus actos têm consequências e que terão que fazer as coisas, mesmo as menos agradáveis, por si e pelo seu presente e futuro, e não apenas porque têm que obedecer aos pais e professores ou para lhes agradar. Estudar, por exemplo, deve ser visto pela criança como uma forma de conseguir mais oportunidades e maiores opções quando chegar a altura de fazer escolhas profissionais e de estilos de vida. Gostar da escola, no que ela tem de óptimo e de menos bom (na perspectiva da criança) é essencial para se aprender a lutar pelo que se quer. O brio e a vontade de vencer (num espírito de competição saudável) sedimentam-se nesta idade.
É por isso que é tão importante que a entrada para a escola se acompanhe de um certo ritual, que o primeiro dia de escola seja comemorado pela família e pelos amigos, que a criança sinta que venceu mais uma etapa na sua vida. Daqui para a frente será necessário um seguimento e acompanhamento das actividades escolares (que durarão pelo menos nove anos mas que se poderão prolongar por mais de vinte). Sem exigir que a criança saiba tudo no primeiro dia, é bom registar e aplaudir cada progresso e detectar tranquilamente eventuais atrasos – para isso, é essencial uma óptima relação entre os pais e os professores, relação essa que deverá ser de respeito e de parceria (e porque não, de amizade?!), evitando culpabilizar logo, quer os pais, quer a Escola, por eventuais problemas que surjam (e evitar que a criança tire partido dessas desinteligências para jogar com uns e com outros, não assumindo as suas próprias responsabilidades).

E para quê a Escola?

Dá vontade às vezes de perguntar. Pelo menos, no espírito das crianças esta questão pode estar subjacente. Para quê, se são felizes assim?! É difícil entender, aos seis, sete, oito anos, que há um futuro para além do fim de semana que vem. Mesmo descontando a (muita) “palha” que o ensino tem, mesmo sem contar com as inutilidades objectivas que se transmitem e só ocupam espaço, há informação e conhecimentos que têm que ser dados, e que são como as fundações de uma casa: feias e que serão depois encobertas, mas que seguram e sustentam a casa e sem as quais esta, por mais bonita que fosse, cairia ao primeiro abanão. Mas visto que esta “base estrutural” é, frequentemente, pouco entendida nos seus objectivos e maçadora nos seus conteúdos, há que arranjar uma forma de a transmitir e incutir que seja minimamente lógica e lúdica. Muitos dos insucessos educativos começam aí: na incompreensão das razões da escolaridade e de certas matérias, quantas vezes ensinadas de forma totalmente desligada dos assuntos correntes da vida da criança.
Este aspecto faz-me lembrar outro: a necessidade de pensar que a Escola é parte integrante da vida da criança. E que o seu dever é descobrir talentos e competências, detectar fragilidades, tentar dar informação, conhecimentos e, sobretudo, transmitir sabedoria que seja geral e sólida, “boa para todos”, mas respeitando que uns podem ser melhores do que os outros e isso não deveria ser explicitamente “denunciado na praça pública”. O sistema de notas tem muito que se lhe diga, e o sistema que aponta e penaliza os erros sem valorizar o que se conseguiu de positivo, em nada ajuda ao processo desejável de aperfeiçoamento e de rigor. Num ditado de 100 palavras, é dito ao aluno que errou oito, e não que acertou 92. E nessas oito há erros de diversa índole: enganar-se a escrever o nome próprio, que já se escreveu centenas de vezes, não é um erro: provavelmente o aluno estava com a atenção dirigida para o conteúdo do texto e o nome saíu “de rajada”, com uma letra a menos. Qual o problema? Outra coisa poderá ser uma palavra que o aluno desconhecia e que tentou tirar pela fonética. Outra ainda, um compasso de espera que o seu cérebro fez (para pensar) e que lhe fez não entender uma palavra. Outra, finalmente, uma coisa que deveria saber e que, por não ter estudado ou por “se estar nas tintas”, errou. Só esta é que deveria contar como “erro”, mas para isso era preciso que os professores se debruçassem com o alunos sobre as suas performances, o que poderiam ter atingido, o que seria de esperar e o que poderá ser melhorado. E não, apenas, “dar notas”. “Acertaste 92. Excelente, mas vê se não poderia ter acertado mais algumas. E no próximo a ver se consegues chegar às 94”. Estamos longe deste modo de pensar, não estamos?
Outro aspecto tem a ver com os ritmos de ensino, as longas aulas em que os alunos têm que estar quietos e calados, em que não se respeitam, nem a biologia, nem a psicologia das crianças. Há professores e professores, dir-me-ão. Felizmente. Mas ainda se registam muitos casos de “ensino à moda antiga”, com professores papagueando temas e veiculando informação, como se abrir a cabeça às crianças e enchê-la de dados fosse o passaporte para uma vida feliz.
Para além disso, as coisas que se aprendem na Escola tem que ser também aprendidas em todos os lados. As fontes de informação, conhecimento e sabedoria são cada vez mais vastas, da casa à rua, passando pela televisão, internet, livros, amigos, vizinhos, casos reais, ficção… a Escola não pode aparecer como “a única que ensina”, e o que deve fazer é complementar tudo o resto, designadamente o que é feito em casa. Esta ideia (muito grata a certos professores) de que os meninos passam a ser deles e que eles é que são os seus “grandes educadores” tem algo de perverso e de estranho exercício de poder. Assim como a atitude dos pais que “dão” os seus filhos à Escola para que esta “ensine”, lavando as mãos como Pilatos.
Levar isto à prática faz com que se tenha que repensar praticamente tudo e abandonar alguns dos métodos de gerações anteriores. Mas se tudo mudou, o Ensino não deve ficar estático. Era como continuar a fazer televisão como se fazia nos anos cinquenta, ou jornais juntando letras em tipografias antigas.
Uma palavra sobre a descoberta de talentos e competências – exigirá uma revisão ampla dos objectivos da Escola e dos sistema de classificação. Há competências sociais e humanas que não têm nota – o actual sistema é ínvio porque conduz, desde o início, à conclusão que a performance académica é a única que interessa. Basta ser bom a matemática ou a ciências, mas pode ser-se um “filho da mãe”. O contrário será bastante penalizado…
Cada criança tem áreas de competência e de talento – e isso passa pela parte cultural, artística, pela música, teatro, pintura, escultura, criatividade… é aí que a Escola deve estar atenta, para poder identificar e, eventualmente, dinamizar, essas capacidades da criança. Claro que letras e números são importantes, mas não chega… não estamos a fabricar “cavalos de corrida” para qualquer “retoma económica”, mas contribuir para o desenvolvimento de pessoas livres e felizes, assertivas e solidárias, que vivem uma vida própria e relacional nas futuras décadas…
A última palavra para o ambiente. Ambiente que tem que ser acolhedor, feito à medida das crianças e não dos professores (basta ver a decoração de muitas salas de aula e dos corredores para perceber a quem se dirigem: a todos menos às crianças), onde a exploração dos limites do corpo e do físico possa ser exercitada sem perigos mas com riscos controlados. Onde as armadilhas que causam acidentes de consequências graves não existam. Onde as crianças se sintam bem e se sintam felizes, condição indispensável para o sucesso educativo. Um ambiente de qualidade, a todos os níveis (ético, relacional, estético, ecológico, de segurança), fará mais pelo civismo e pela cidadania do que milhares de “pregações” feitas pelos adultos.

Pois é…

Muito haveria para dizer, mas o espaço não é elástico. E a qualquer altura voltaremos ao tema…
Milhares de crianças estão a começar a escolaridade obrigatória. Há um grande consenso relativamente ao facto de a escolaridade ser um dos maiores factores protectores de saúde e de bem-estar. Felizmente o ensino tende a universalizar-se. Ainda bem. É sinal que teremos, seguramente, gerações cada vez mais saudáveis. Não esqueçamos, no entanto, que o ensino não se faz só na Escola mas em todo o lado. E servirá de pouco se a criança aprender a ler e os pais não lhe estimularem o gosto pela leitura, se aprender a desenhar mas passar as tardes em frente do televisor, gostar de desporto e não ter um local para o praticar, aprender as regras sociais e de convivência e deparar, em casa, com um ambiente desinteressado, violento, malcriado ou ditatorial.
Apoiemos as crianças nesta fase da sua vida e não tenhamos medo – pelo contrário, tenhamos orgulho, pais e professores -, de elas serem, agora e no futuro, muito melhores do que nós fomos ou somos.

Mário Cordeiro
Pediatra
mario.cordeio@netcabo.pt

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