A ideia foi da Alexandra. Juntar as primas todas para jantar com o tio António no dia de anos dele.
O tio António era o marido da tia Esmeralda, falecida há quase dois anos. Vivia onde sempre tinham vivido, na casa que foi dos nossos avós e onde em miúdas costumávamos passar férias de Verão juntas.
Tenho sempre algum receio destes encontros um pouco revivalistas. Já se passaram tantos anos e seguimos vidas tão diferentes, tão afastadas umas das outras. E depois o tio António era tão silencioso, fechado, se calhar nem ia achar grande graça à ideia.
A Alexandra não desistiu e pediu para ser eu a ligar, “…afinal foste sempre a preferida dele”. Rimo-nos destas rivalidades infantis e aceitei a incumbência.
Do outro lado da linha, a primeira resposta foi um enorme silêncio… o que era habitual por parte do tio António. Sempre foi um homem pouco falador e ao longo dos anos foi silenciando cada vez mais. Nós ríamos, pois em contrapartida a tia Esmeralda ocupava todo o espaço de conversa. Falava por ela, por ele e ainda sobravam palavras. Eu não gostava muito dela, teimava em tentar falar directamente com o tio e ela teimava em dar as respostas por ele… a embirração era mútua portanto… Mas voltando ao telefonema, lá veio a resposta. Que sim, também tinha saudades nossas, mas com duas condições: que o jantar fosse lá em casa e que não queria presentes. A única coisa que pedia, se fosse possível, era que fizéssemos arroz doce pela receita da tia Esmeralda pois tinha saudades daquele sabor. Referi que não queríamos dar trabalho, que podíamos ir jantar fora… do outro lado… silêncio… mas percebi-o contente e ficou combinado.
Recebeu-nos gentilmente, já com a mesa posta na sala de jantar, que a tia quase nunca deixava que se usasse, com a loiça, copos e talheres “bons”, que a tia raramente usava, porque se podiam estragar ou partir. A sala de jantar fazia parte da zona da casa onde no passado estávamos proibidas de entrar. Estava reservada para visitas especiais.
O jantar correu bem, com grande algazarra, a pôr a escrita em dia. Até o silêncio do tio António sabia a algo familiar e confortável.
No final, já depois do arroz doce e dos parabéns, pedimos um discurso…
Levantou-se sem dizer nada e foi buscar uma caixa donde tirou um saco para cada uma de nós. Reconhecemos os sacos de renda feitos pela tia Esmeralda, com as iniciais dos nossos nomes. Surpreendidas e curiosas como miúdas pequenas, abrimos sofregamente os sacos.
Em cada um estava: uma garrafa de vinho do Porto do ano de nascimento respectivo de cada uma de nós, um envelope com fotografias de férias antigas e o chapéu de pano, que a tia Esmeralda nos obrigava religiosamente a usar e que na altura todas detestávamos.
Ficámos de olhos brilhantes, meias parvas a olhar para ele, que finalmente disse: “Gostei muito que viessem e lembrei-me de vos dar estas pequenas coisas, que têm estado aqui guardadas e afinal vos pertencem. Sempre gostámos muito de vos ter cá em casa… obrigado por terem vindo… agora já é tarde para mim e vou-me deitar… se quiserem cá ficar, pedi à Margarida para fazer as camas de lavado e arejar os quartos… a casa é vossa”.
Estou a voltar para casa e a olhar para o saco de renda… a pensar que o amor também é assim, feito de silêncios e de pequenas coisas.

































