“… És uma mulher-a-dias… o teu trabalho… no fundo é o que tu fazes… ser uma mulher-a-dias”.
Ouvi e parei uns segundos… sorri e pensei que na verdade esta era uma boa imagem, que encaixava bem.
Entrar na casa/vida das pessoas… Ajudar a limpar, a retirar o lixo, a deitar fora o que já se estragou ou nunca prestou, a reciclar… ajudar a tentar tornar mais estético aquilo que é tantas vezes feio e violento… Por vezes a confiança e a cumplicidade surgem de modo fácil e linear… por vezes de modo difícil e complexo… afinal não se abre a porta, nem se dá a chave de casa a qualquer um, para entrar e andar a remexer nas nossas coisas…
Ocorre-me a conversa e a metáfora, agora que estamos na semana do Natal e em que me calhou a crónica.
Difícil sempre este período para as mulheres-a-dias, cheio de trabalho pesado… tão agudizados surgem nesta época, o choque, o conflito, o desencontro entre o desejado espirito natalício e a realidade relacional e vivencial… a falta de intimidade, a falta de verdade, a falta de encontro… o outro lado da festa, o que apesar do esforço e da vontade, ameaça estragar tudo e cheirar mal… Às vezes pelo contrário… como naquele caso em que após anos de fachada e de raiva surda e desencontrada, aconteceu a doença incapacitante, a perda, a dependência e inesperadamente, foi possível ir buscar uma ternura e uma tolerância genuínas, que nunca tinham tido hipótese de aparecer e aquele casal pôde reparar-se e apaziguar-se mesmo no final do caminho… como se não tivesse podido ser diferente, como se tivesse que ser assim… difícil… complexo… sofrido… mas nem por isso vazio ou sem sentido… foi o possível… e foi talvez necessária a proximidade da finitude, para baixar guardas e defesas e aparecer a generosidade da troca… Que pena não ter sido antes?… Foi uma perda de tempo e um acréscimo de dor?… Não sei… Nunca sei bem estas respostas… Sei que pessoas, são pessoas… com toda a estupidez, toda a maldade e toda a maravilha que contêm… Neste caso sei que apesar da idade e da doença, há agora apaziguamento e sentido e que isso é bom.
Vêm-me à cabeça várias histórias, umas vividas, outras lidas e lembro-me dum poema, desta vez da Adília Lopes*:
“Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta
Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa”
*Adilia Lopes, Dobra (Poesia Reunida 1983-2007)
































