“Há muito tempo que queria ter cá vindo…”
Que primeiro tinha sido para pedir ajuda para a mãe, no início do seu processo demencial…
Que não tinha conseguido…
Que a mãe não aceitou e depois ficou tarde demais… Que as coisas se tinham complicado… Que à doença mental se tinham somado problemas físicos… Que se tinha sentido perdida e sem saber bem o que fazer.
Que agora vinha por ela própria… Que agora tinha tudo para ser feliz, mas não conseguia…
Que tinha finalmente encontrado um homem bom, que a tratava bem… Que os filhos estavam criados e bem na vida…
Que a mãe agora estava num lar e ela se continuava a sentir perdida e culpada…
Que a culpa vinha desde que se lembrava de ser gente…
Que nunca se tinha sentido amada por aquela mãe… Que tinha sempre sentido que não fazia a coisa certa… que nunca conseguia agradar-lhe e fazê-la feliz…
Que o pai era um homem violento e maltratante para a mãe… que esta tinha sofrido muito e tinha ficado dura e fria…
Que apesar da violência, gostava do pai e lembrava alguns momentos de cumplicidade com ele…
Que achava que a mãe não lhe perdoava isto… Que não era possível gostar de ambos… Que quando ele morreu e ela o chorou, o que viu no olhar endurecido da mãe foi desprezo e que se sentiu órfã e ainda mais culpada…
Que quando a mãe começou a ficar doente e mais dependente, sentiu como se ainda a detestasse mais a ela filha… Que achava que a mãe não lhe perdoava o facto de ser mais jovem e ter saúde… Que parecia que tinha inveja dela… Que isto a fazia sentir ainda mais culpada e lhe retirava o prazer de usufruir a sua própria vida e aquilo que tinha construído…
Que quando finalmente acabou o seu casamento com um homem também ele maltratante, foi criticada verbal e surdamente pela mãe, que a chamou de desgraçada e mal comportada…
Que parecia que para a mãe, ser mulher tinha que ser uma maldição e um castigo…
Que tinha sido muito difícil testemunhar a doença da mãe… Vê-la a ficar frágil e dependente… a mãe que tinha sido sempre tão altiva, tão autoritária na relação com ela…
Que apesar de desmemoriada e confusa, continuava a rejeitar a ajuda dela, reagindo como se ela a quisesse controlar e maltratar…
Que às vezes tinha vontade de gritar com a mãe, de lhe atirar à cara todas as sovas e todas as palavras ofensivas e de zanga… que a tinha quase obrigado a casar com um homem de quem não gostava muito… só para conseguir sair de casa… daquele inferno que era a vida entre o pai e a mãe… para entrar noutro inferno que repetiu a violência e o desamor… Que ficava a sentir-se má por ter estes pensamentos e estas ideias… Que só queria dizer à mãe que lhe perdoava e que de certa forma também ela sido vítima… mas que as palavras não saíam e o beijo ou o abraço aconteciam sempre sem jeito e sem resposta…
Que sempre que visitava a mãe, no meio da sua demência cada vez maior, continuava à procura dum olhar mais cúmplice, dum sinal de que estava perdoada do que quer que fosse a sua culpa…
“Só queria… Olhe já nem digo bem sentir amor de mãe… Só queria assim… umas migalhas… de que me reconhece como sua filha e que isso lhe faz algum bem…”

































