Elogio da Imperfeição | Escolhas

0
1679

Falávamos de escolhas… de todo o tipo de escolhas… do stresse actual em que passamos a vida a ter que escolher coisas… desde o tipo de amaciador de cabelo, passando pelo tipo de alface, de bolachas com ou sem açúcar, comida com ou sem gordura, etc. e daí a conversa derivou para outro tipo de escolhas… mais complexas… escolhas de vida, de companheiros/as, de profissão, de serviço público versus privada, de trabalhar por conta de outrém ou não… Enfim… falávamos da gestão diária das muitas ansiedades, grandes e pequenas, a que os processos de escolha, a vida, nos obrigam…
E de súbito ocorreu-me uma história:
“… a Dra. X chamou-me e ralhou comigo… que eu tinha que cumprir com os horários… que não podia funcionar como se fosse mais do que os outros… e depois também que não devia ter trocado de telemóvel… que devia ter poupado o dinheiro… eu gosto dela… sei que no fundo é minha amiga e se preocupa… mas eu gostava que ela entendesse… agora vivo sozinho… nunca tive, nem vou ter uma namorada… já viu bem como eu sou?… estou cada vez mais gordo e a ficar careca… não tenho dinheiro nem casa própria, vivo da pensão… e depois sou esquizofrénico… tenho esta cabeça que a doutora conhece… com estes pensamentos complicados… Já viu o que é estar preso dentro deste corpo?… com esta cabeça?… e não ter para onde fugir?… Por isso às vezes não aguento estar com outros… irritam-me… prefiro ficar em casa ou andar por aí e ouvir música… foi por isso que comprei este telemóvel, porque posso descarregar músicas… ponho os fones… e consigo ficar menos só… nestas alturas também faço os remédios de SOS… mas não consigo ir… gostava que a Dra. X percebesse… que às vezes preciso de sentir que também mando alguma coisa na minha vida… eu não quero que ela se zangue, ou que me ponha fora… mas às vezes não consigo ir…
Atrás desta outra história apareceu:
A minha amiga, cheia de boas intenções, tinha insistido com Y para que entrasse no programa… garantia formação e uma ocupação remunerada… Y não queria uma ocupação remunerada, com horários e chefias… queria manter os biscates que lhe davam para viver… só precisava duma pequena ajuda para melhorar as condições da casa… chovia lá dentro e precisava de pequenas reparações… após muita insistência aceitou entrar no programa. No final do primeiro mês, após ter recebido a remuneração prevista, foi bater à porta da minha amiga: “Dra. Z… posso entrar? Olhe tenho aqui o cheque que me deram, que me pagaram… sabe?… venho entregar-lho, dar-lho… como lhe disse, para mim isto… o cheque… não é importante, mas percebi que era para si… por isso é seu… a doutora merece-o… nunca o teria ganho se não fosse por si…
Escolhas… Pois… E ocorre-me um poema de António Amaral Tavares*:

“Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça
um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar
e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo
e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.

Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim
o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois
(…)
*António Amaral Tavares, Movimento de Terras (Lisboa, Língua Morta, 2016)

- publicidade -