ELOGIO DA IMPERFEIÇÃO – Despovoei-me…

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Noticias das Caldas
| D.R.

“… É como se eu estivesse a fazer a montagem dum filme… sequências e sequências de cenas… metros e metros de película… corta-se e cola-se e a história começa a fazer sentido… Foi aí que percebi que andei anos e anos a despojar-me de pessoas… a despovoar-me…
Quer começar por onde?… Pela infância?… Filho único, de um casamento que perdeu a memória de encontros felizes, com um típico pai cada vez mais afastado da casa e uma mãe cada vez mais amarga, como se tivessem que cumprir um destino e uma maldição… acredito que possam ter sido felizes num tempo antes de mim… mas disso não tenho forma de guardar memória… fui-me isolando daqueles dois… percebia as amarguras e as solidões… mas recusava entrar em cena… mais valia fechar as portas… afastar-me e preparar-me para não sentir as suas mortes…

Ter filhos ficou fora de questão… nesse aspeto eu e a minha ex-mulher estivemos sempre de acordo… às vezes achava que eramos uma espécie de náufragos que se agarram um ao outro para tentar sobreviver… com o risco de se poderem afundar os dois… agora acho mais que fomos sempre duas ilhas, que nunca se tocaram verdadeiramente… Há um episódio que ajuda a perceber… Por razões profissionais, ela não só estava dias fora de casa, como muitas vezes chegava a desoras e extenuada com as diferenças horárias… Num desses dias decidi preparar um chá com torradas e levar-lhe à cama… já no caminho, olhei para o jardim e lembrei-me de ir apanhar uma rosa para colocar no tabuleiro… Ela agradeceu a gentileza mas quando pôs a chávena de chá à boca, saiu-se com esta: ”Se não tivesses ido apanhar a porcaria da rosa, o chá e as torradas ainda estariam quentes…”
Percebo agora que quando a olhei nesse momento vi o mar que nos separava… sem hipótese de pontes, nem de encontro… mas não percebi na altura, não percebemos logo e não conseguimos fugir dos rituais sadomasoquistas dos processos de separação… acusações, discussões estéreis, questões de dinheiros, desconfianças, diabolizações… como se fosse melhor ficar com a raiva, o mau trato e o desencanto, do que ter passado despercebido, sem deixar rasto na vida do outro, como se esse fosse o verdadeiro medo… deixar de existir, como se nunca se tivesse existido… na cabeça do outro… Quando percebi que este era o principal motivo que nos fazia perpetuar o casamento… deixei cair… e tudo ficou estranhamente amigável, num divórcio fácil… sem raízes…
Depois veio o tempo em que o telefone tocava e eu não tinha paciência para atender e falar com as pessoas, muito menos encontrar-me com elas… claro que o telefone foi deixando de tocar… e agora confesso que por vezes fico a olhar para ele… a ver se toca…
Mas sabe o que é que fez o clic… o que me fez perceber que me tinha assim como que despovoado?… Foi uma coisa um pouco tonta… estava a ver um programa na televisão sobre ursos… e de repente acendeu-se uma memória intensíssima dentro de mim… Quando em muito miúdo ia ao pinhal com o meu pai “caçar ursos”… e no final ele fazia uma fogueirinha e assava umas tiras de entremeada nas brasas… dizia que estávamos a assar “o urso”… que depois comíamos com todo o prazer do mundo…
O que é vou fazer com isto?… não sei… ainda não sei… mas percebi que apesar de me ter despovoado, não sou, nunca fui, uma ilha deserta…”

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