Elogio da Imperfeição

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Noticias das Caldas
| D.R.

A minha amiga que acha que nada melhor do que a literatura para explicar a vida e as pessoas, começou de há um tempo a esta parte a classificar alguns acontecimentos e episódios, segundo escritores e títulos de livros.

No último jantar juntas, chegou estafada e desconsolada. Hospital, consultas, internamento, urgências. Muito trabalho e pouco reconhecimento.
“… Mas sabes, houve um dia que só me fez lembrar Camilo Castelo Branco… não te rias, estou a falar a sério… vê lá se não foi um dia “Camiliano”.
Primeiro apareceu um casal de velhotes, já à roda dos oitenta. A consulta era para ela, por queixa de insónia crónica. Pediu para o marido entrar e depois pediu para que a consulta fosse para ele e não para ela… Que ela precisava mas que estava mais preocupada com ele. Que ele, que sempre tinha sido um homem de trabalho, que nunca estava parado, andava há semanas sem forças e sem vontade… que ela nunca o tinha visto assim. Ele acena que sim, que era verdade, mas que estava muito preocupado com ela. Que ela já há muitos anos tinha dificuldades no sono, mas que agora andava pior e sempre nervosa. Que ele podia esperar e ter a consulta mais tarde. Contam uma história dum início de casamento atribulado e amaldiçoado por outra mulher… em que parecia que nunca podiam ser felizes, nem estar em paz. Percebi um caminho feito com muita dureza, com filhos inevitavelmente distantes, numa casa em que agora vivem ainda mais isolados devido a uma disputa de terras, serventias e extremas, que acabou numa sala de tribunal e com relações cortadas com os vizinhos, que ainda eram família. Que afinal só se tinham um ao outro e que só queriam ter saúde, poder ter algum sossego e cuidarem um do outro… Que estavam cansados de sofrer e de lutar e de perder.
Depois, ainda estava eu a pensar nesta história, entra um homem também já para cima dos setenta. Trazia uma história de fugas, que não eram bem fugas, porque não fugia de nada. Acontecia que às vezes sentia um impulso de partir, de sair de onde estava e ir para outro lugar… assim à toa, sem destino definido… só porque queria mudar… que não queria preocupar a família. Falou de viver à beira Tejo e ficar horas a olhar para os barcos a entrar e sair do porto. Falou de como adoeceu a primeira vez. Que namorava uma rapariga que amava profundamente, mas que ela saiu do país com a família, numa viagem de barco… que iam à procura de uma vida melhor… Ela prometeu que escreveria e que se voltariam a encontrar. Ele começou a adoecer, a não conseguir trabalhar e a piorar à medida que rareavam as cartas que finalmente deixaram de aparecer. Foi internado e até levou “choques na cabeça”. Lá reagiu, empregou-se, casou, queimou as cartas, teve filhos… mas a mulher sempre teve ciúmes da outra e achava que se ela aparecesse, ele a trocaria de imediato… e que talvez ela tivesse razão… que talvez nunca lhe devesse ter contado esta história… que foram os dois infelizes juntos, que acabaram divorciados e que a mulher nunca lhe perdoou esta espécie de traição… que a compreendia mas que não conseguia mandar no coração. E as lágrimas corriam cara abaixo, sem soluços, sem barreiras e ele dizia que nunca mais tinha sido feliz…
E olha, eu acabei o dia sentada nas escadas, a pensar no Amor de Perdição, no Camilo e nas espantosas pessoas.”
Paula Carvalho
paulatcarvalho@gmail.com

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